As funções exercidas pelo Delegado e
sua (re) colocação frente a proposta de polícia unificada
Autor: Thiago Frederico de Souza Costa - Delegado de Polícia
As funções exercidas pelo delegado de
polícia no Brasil e sua (re) colocação frente a proposta de polícia unificada
com carreira única.
Com o advento das discussões acerca da desmilitarização da Polícia Militar, muito se tem falado sobre unificação das instituições Polícia Militar e Polícia Civil, ao mesmo tempo em que se tem defendido a unificação de todas as carreiras policiais, criando-se o que se denominou carreira única ou “carreirão”.
Com o advento das discussões acerca da desmilitarização da Polícia Militar, muito se tem falado sobre unificação das instituições Polícia Militar e Polícia Civil, ao mesmo tempo em que se tem defendido a unificação de todas as carreiras policiais, criando-se o que se denominou carreira única ou “carreirão”.
Parece evidente que há nessa proposta
uma dupla intenção, muito bem articulada, uma partindo de algumas carreiras
policiais com a pretensão de alcançar o protagonismo hoje exercido pelas
autoridades policiais, e outra de origem externa e articulada com a primeira.
Essa estratégia é muito bem
elaborada, pois é elementar que na formação de uma carreira única um praça da
Polícia Militar ou um agente da Polícia Civil não poderiam exercer as funções
do delegado de polícia, o que rechaçaria de imediato tal ideia.
Por isso, percebe-se claramente a
estratégia de subtrair as funções jurídicas e privativas de que o delegado de
polícia está investido, repassando-as a outra instituição com o fito de
realizar a direção das investigações criminais, postura que demonstra o plano
arquitetado de primeiro enfraquecer para em seguida viabilizar a absorção da
carreira de delegado de polícia pelo carreirão, acabando praticamente com
a carreira de delegado de polícia.
Tais pretensões não passam
despercebidas, razão pela qual se impõe a busca pela resposta ao seguinte
questionamento: unificadas as instituições policiais e criada uma carreira
única, onde se posicionaria as funções jurídicas e exclusivas exercidas hoje
pelo delegado de polícia?
Para responder a ele, impende buscar
a origem de tão relevante função dentro do sistema de justiça criminal, de modo
que se pode afirmar com tranquilidade que o delegado de polícia, por semelhança
de nomenclatura e de atribuições, data do Império, tendo como marco normativo
de relevo a Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, que tratava da reforma do
Código de Processo Criminal.
À época, a função do então chefe de
polícia, seus delegados e subdelegados era exercida por desembargadores e
juízes, membros do Poder Judiciário, que já gozavam de prerrogativas como
inamovibilidade – à época anamovibilidade –, possuindo, dentre várias
atribuições previstas no art. 4º, a de que conceder fiança, expedir mandados de
busca e apreensão e encaminhar as provas e esclarecimentos sobre delitos ao
juiz responsável pelo julgamento; um modelo de persecução penal preliminar que
se aproxima ao do juiz de instrução, adotado ainda em alguns países.
No que tange as Polícias Judiciárias
– Polícia Federal e Polícia Civil – a despeito de todas as demais carreiras ou
cargos existentes, o cargo de delegado de polícia é o único para o qual se
exige graduação em Direito, requisito plenamente justificável na medida em que
ele exerce uma função peculiar dentro do nosso sistema de persecução penal,
como já exerceram alhures os magistrados.
Forte notar que o delegado de polícia
possui natureza complexa ou dúplice, pois alia os aspectos: (i) formação
jurídica prévia e (ii) formação técnica adquirida após ingresso no cargo.
Por tais características, o delegado
de polícia não exerce apenas a mera função de chefe de uma equipe de investigação,
um reducionismo exacerbado ao aspecto puramente técnico, porquanto o delegado
de polícia se apresenta dentro do contexto da justiça criminal como verdadeiro
agente político com o relevante e indeclinável encargo de decidir com base no
direito posto, daí sua natureza também jurídica.
Sobre este viés da natureza jurídica
e exclusiva de estado da função exercida pelo delegado de polícia, constata-se
que compete a ele decidir sobre a lavratura da prisão em flagrante, formando a
sua própria opinio delicti sobre os fatos no ato de indiciamento, com poder
para determinar a prisão ou conceder liberdade ao preso e arbitrar fiança,
podendo ainda determinar a apreensão e a restituição de bens relacionados ao
crime, situações em que atua, tal como o juiz, com o poder de impor, com base
na lei, restrições sobre bens e até mesmo sobre o status libertatis do cidadão.
Está o membro da carreira de delegado
de polícia incumbido do relevante dever de resguardar direitos, sejam os da
vítima, para preservá-la de males ainda maiores do que os já suportados, sejam
os do infrator, para preservar sua integridade física e moral e lhe garantir o
exercício de seus direitos constitucionais.
Até pouco tempo, o art. 531 do Código
de Processo Penal estabelecia que o processo sumário das contravenções penais
se iniciava pelo auto de prisão em flagrante ou por portaria do delegado de polícia,
dotando-o de verdadeiras atribuições jurisdicionais, mas que fora revogado em
2008 pela Lei. Nº 11.719, não obstante tenha o delegado permanecido com o poder
de representar ao Poder Judiciário pelas medidas cautelares necessárias à
persecução penal.
Por essas razões, o modelo de
persecução penal adotado no Brasil em sua fase preliminar muito se assemelha ao
modelo de juízo de instrução ou de garantias, cabendo ao delegado de polícia as
funções que cabem ao juiz na fase pré-processual, ressalvadas as hipóteses
sujeitas à reserva de jurisdição, nas quais o delegado de polícia não possui
competência autônoma para decidir, mas a tem para representar diretamente ao
Poder Judiciário.
As atribuições do delegado, como se
vê, não encontram semelhante no âmbito de todas as demais carreiras existentes
em quaisquer instituições policiais, sendo-lhe exclusivas, razão pela qual as
funções exercida pelo delegado de polícia dentro do sistema de persecução penal
não podem ser absorvidas e integradas em um carreirão policial.
Ademais, cumpre anotar que em suas
funções, o delegado de polícia é auxiliado por agentes e escrivães, que
integram o rol de agentes da autoridade policial, com natureza auxiliar, de
execução e de suporte às funções exercidas pelo delegado e com elas inconfundíveis.
Essas são as atribuições que dão
conformação e natureza jurídica às funções exercidas pelo delegado de polícia,
para as quais até mesmo o mais novo delegado de polícia está plenamente
capacitado desde o ingresso no cargo, da mesma forma com que juízes e
promotores estão aptos ao pleno exercício de suas funções desde a posse no
cargo.
A par dessas funções, existem ainda
as de natureza técnico policial exercidas pelo delegado de polícia, o que
dá a plena convicção de que ele exerce funções de natureza complexa – ou também
denominada natureza dúplice.
Nesse diapasão, todos os delegados de
polícia, antes ou logo que tomam posse no cargo, passam por um curso de
formação nas academias de polícia, dotando-o assim o operador do direito também
da capacidade técnica necessária para operar no âmbito técnico das
investigações criminais.
Sob esse aspecto, e apenas neste, a
formação dos demais cargos policiais converge em parte com a formação dos
delegados de polícia, porquanto todos devem estar tecnicamente capacitados para
a atividade policial, sendo notório que, ainda assim, há evidente distinções
como o fato de que ainda em muitos Estados exige-se apenas nível médio para o
ingresso nas carreiras subordinadas à de delegado de polícia, dando-nos a certeza
de que as funções do delegado de polícia não se amoldam em uma carreira
policial única.
Conclui-se que nessas razões residem
os fundamentos da convicção de que a natureza do cargo de delegado de polícia,
além de jurídica, como suas atribuições e requisitos de ingresso deixam
evidente, é também técnica, no sentido de que também é preparado tal como todos
os demais policiais com os conhecimentos específicos sobre investigação
criminal e outras questões específicas imprescindíveis à função de polícia
judiciária.
Aliás, nisso reside o fascínio que a
carreira de delegado de polícia desperta, haja vista seu titular ser símbolo do
próprio Estado, signo de respeito e da lei, com a legitimidade moral e legal
para buscar a realização da justiça no âmbito do ramo do Direito que mais
gravemente afeta os bens jurídicos mais valiosos.
Por esse destaque que exerce e que se
faz premente a ressalva no sentido de registrar que, a despeito da relevância
que possui dentro do sistema de justiça criminal, é evidente um movimento que
busca desprestigiar o delegado de polícia, seja pelo discurso insistente de
alguns insatisfeitos com a própria condição, seja pela cobiça de outras
instituições em tomar para si o poder de presidir as investigações criminais.
Embora seja perceptível a união
dessas duas frentes para enfraquecê-lo, uma só conclusão é irrefutável: ainda
que se institua uma polícia única, com apenas uma carreira policial – a
despeito da evidente impertinência de tal modelo –, a função do delegado de
polícia jamais poderá ser absorvida pelo carreirão.
Isso porque se por alguma obra do
imponderável a Polícia Militar, mesmo desmilitarizada, vier a se unir à Polícia
Civil e todos os seus integrantes passarem a constituir uma só carreira, mais
do que nunca será imperiosa a existência de uma carreira independente, de
natureza jurídica, para o controle interno de legalidade dos atos policiais e
de seus agentes, bem assim para garantia de que os direitos dos cidadãos serão
resguardados, justificando com ainda mais razão as funções exercidas hoje pelo
delegado de polícia de forma hierarquicamente superior e independente do
carreirão.
Forte no exposto, a resposta ao
questionamento inicial passa necessariamente pela premissa inexorável da
natureza jurídica complexa e inconfundível das funções privativas exercidas
pelo delegado de polícia sob essa perspectiva dúplice, das quais não pode ser
despojado, de modo que o debate político acerca da implantação um modelo de
polícia única e de carreira única deverá decidir sobre a (re) colocação dessas
funções exercidas pelo delegado de polícia frente à nova instituição policial
sob alguma das três perspectivas possíveis:
1) Delegado de polícia integrante de
carreira específica integrante da polícia, posicionada a par da carreira
policial única - esta composta por todos integrantes oriundos da Polícia
Militar e Polícias Civis, exceto o delegado de polícia. A carreira de delegado
de polícia no modelo de carreira única seria semelhante à carreira existente atualmente,
incumbindo-lhe a direção da instituição policial, bem como a presidência ou a
coordenação das funções de investigação criminal e de polícia judiciária. A
execução dos atos de investigação criminal seria realizada pelos policias
integrantes da carreira policial única, que poderiam formar equipes chefiadas
por policiais mais experientes (comissário de polícia), todos sob o controle
finalístico e hierárquico do delegado de polícia, que poderia determinar a
correção de atos irregulares. Ao delegado de polícia caberia ainda a adoção das
medidas judiciais necessárias, as representações pelas medidas cautelares ao
Poder Judiciário e demais atos de natureza jurídica, ficando responsável também
pelo controle interno de legalidade dos atos policiais, velando pela garantia
dos direitos e da integridade física do preso ou investigado, pela lisura da
prisão em flagrante e pela concessão de liberdade ao preso em flagrante, quando
cabível a fiança ou quanto não estiverem presentes os motivos para decretação
da prisão preventiva. O delegado, tal como ocorre hoje, atuaria de forma isenta
e imparcial, como uma espécie de juiz de garantias, com exceção das
medidas sujeitas à reserva de jurisdição. O delegado agiria com a
imprescindível independência funcional, sem subordinação hierárquica, para a
consecução do interesse público na apuração do crime, gozando das mesmas
garantias funcionais das demais carreiras jurídicas da magistratura e do
Ministério Público, cada um exercendo parcela de poder sobre uma etapa de toda
a persecução penal;
2) O delegado de polícia retornar à
sua origem no Poder Judiciário, transformado em juiz de instrução ou juiz de
garantias. Neste modelo, o delegado como juiz de garantias seria responsável
pela interação direta com a polícia e com o Ministério Público, a quem seria
transferida a supervisão dos atos investigativos relacionados a todos os crimes
na fase de investigação, já que a instituição policial ficaria sem o membro da
carreira jurídica internamente (delegado de polícia). O delegado (juiz de
garantias) seria membro do Poder Judiciário, e teria a função exclusiva de
atuar na fase de investigações criminais, com o mesmo tratamento funcional com
relação a direitos, garantias e obrigações dos juízes de primeiro grau.
3) O delegado de polícia passa a
integrar o Ministério Público, que ficaria responsável pela coordenação das
investigações de todos os crimes. A polícia única de carreira única
permaneceria subordinada ao Poder Executivo, tal como ocorre atualmente. O
delegado de polícia passaria a ser integrante do Ministério Público. O modelo
proposto atenderia o interesse do Ministério Público, pois lhe conferiria a
atribuição de investigação criminal plena, tal como defendido durante a
campanha contra a PEC37, que não é cabível no atual modelo em que já existe a
carreira jurídica de delegado de polícia na Polícia Judiciária, o qual exerce a
função de zelar pela legalidade e representar judicialmente pelas medidas
judiciais necessárias as investigações. No modelo proposto de Ministério Público
investigador a polícia de ciclo completo faria a investigação sob controle
finalístico e de legalidade exercido por um membro do Ministério Público, onde
estaria colocado o membro oriundo da carreira de delegado de polícia, a quem
seria remetido o produto final das investigações. Por fim, nesse modelo um
membro atuaria na fase de investigação e outro na processual, evitando-se que o
mesmo membro atuasse nas duas fases, causa de impedimento prevista no Código de
Processo Penal (art. 252, I e II, c/c art. 258, ambos do CPP).
Podemos concluir que independente do
modelo, a questão da carreira de delegado de polícia está intrinsecamente
ligada à função jurídica essencial exercida por ele, que poderá estar no âmbito
da própria polícia (como ocorre hoje na Polícia Judiciária), no Poder
Judiciário ou no Ministério Público, refletindo assim cada uma das três
hipóteses aventadas acima.
Qualquer que seja o modelo, a função
de presidir as investigações criminais e a atividade de polícia judiciária
atrai para o delegado de polícia necessariamente a existência de independência
funcional e as garantias de que são dotados magistrados e membros do Ministério
Público, porquanto todos exercem parcela de poder sobre um todo, que é o
complexo procedimento de persecução penal.
Por todo o exposto, conclui-se que o
delegado de polícia é o titular de uma função indispensável e dele
indissociável, ao mesmo tempo em que não pode ser absorvida pelo modelo de
carreira policial única. Por isso, adotando-se este modelo, uma decisão
política, atenta à imprescindibilidade da função, deverá concluir pela
colocação do delegado de polícia como carreira específica dentro da própria
instituição policial ou pela sua integração no âmbito do Poder Judiciário ou do
Ministério Público, de acordo com o modelo que se pretenda adotar: do delegado
de polícia como carreira independente na estrutura policial, como juiz de
garantias ou como membro do Ministério Público investigador.
*Thiago Frederico de Souza Costa
Delegado de Polícia