LUIZ FLÁVIO GOMES
(@professorLFG)*
O desrespeito com
que os governantes, em geral, tratam a polícia civil e a polícia técnica
(científica) passa, dentre outros, por dois pontos cruciais: (a) militarização
da segurança pública e (b) doutrina do ultraliberalismo norte-americano e
inglês.
Militarização da segurança pública. É da
tradição brasileira o modelo militarizado de segurança pública. E o que sempre
foi da tradição brasileira agora parece estar virando moda praticamente mundial:
a militarização da segurança urbana, marcada por um padrão autoritário de
controle social. Que estaria ultrapassado, segundo Zaffaroni (2012a, p.
425):
“O modelo policial militarizado,
hierarquizado, de ocupação territorial e com capacidade de arrecadação autônoma
está esgotado na globalização, porque é incapaz de fazer frente às novas formas
de tráficos e mesmo ao delito convencional. Ele gera uma forte desconfiança na
população, o que repercute no esclarecimento dos delitos: as pessoas resistem em
testemunhar, temem represálias, e, com ou sem fundamento, suspeitam que os
funcionários possam ser cúmplices ou encobridores. É um modelo suicida, que
serviu para uma sociedade estratificada ou oligárquica, mas que hoje destrói uma
instituição necessária, porque vai anulando sua função manifesta, perde eficácia
preventiva, os comandos médios escapam ao controle, não é possível controlar a
corporação quando excede certa dimensão, o recrutamento indiscriminado permite
que se infiltrem algumas pessoas que pretendem montar seus próprios sistemas de
arrecadação, associando-se à delinquência comum, a imagem do Estado se
deteriora, a decepção se espalha.”
Guerra, política e negócios. No que diz
respeito especificamente ao Brasil, “considerando-se que se trata de uma
sociedade de enclaves [territórios dentro de outro território], caracterizada
por uma arquitetura urbana de secessão, por um Estado permeável a interesses
particularistas e por desigualdades muito expressivas, a gestão política de
conflitos entre nós tem privilegiado a militarização da segurança pública, o uso
arbitrário da força policial e as operações de guerra interna travadas nas
inúmeras zonas de não direito de nossa sociedade (…) esse novíssimo urbanismo
militarizado consiste na colonização crescente do espaço urbano e da vida
cotidiana nas cidades por uma racionalidade militar, vale dizer, por práticas e
discursos que têm no centro a noção de guerra (…) na gestão das cidades do
capitalismo global e isso é decisivo para a geração e ampliação dos negócios
(novas tecnologias de controle, indústria da guerra, gestão militarizada do
crime etc. (…) está estabelecido o amálgama entre guerra, política e negócios”)
(Laurindo D. Minhoto, O Estado de S. Paulo de 14.10.12, p. J3).
Para que servem todos os discursos bélicos e
as práticas militarizadas? Para desencadear negócios assim como as múltiplas e
variadas violências do Estado (como bem sublinha Pilar Calveiro: 2012, p. 69 e
ss.; Anitua: 2009, p. 145 e ss.), que se acham inseridas dentro de um contexto
de sobreposição entre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, sendo que este
último nada mais representa que uma suspensão fática e jurídica do Direito e dos
direitos, que deixam de irradiar sua eficácia normativa para todo o território
de sua soberania (Agamben: 2005, passim).
Polícia militar “vs” polícia judiciária.
Parece muito evidente que uma política de segurança militarizada acabe
priorizando o segmento policial que garante a governabilidade, em detrimento
daquele que auxilia a Justiça penal na descoberta dos crimes. Aliás, quanto mais
ineficácia da polícia judiciária (a que investiga os crimes), melhor para quem
comete abusos no exercício da segurança pública militarizada. A quantidade de
recursos, de pessoal, de tecnologia etc., dada para a polícia militar, é
incomparavelmente maior que a recebida pela polícia civil. Vale mais a garantia
da governabilidade que a descoberta de delitos. Se a polícia civil (judiciária)
não descobre tantos crimes, isso não derruba nenhum governo. Sem a garantia da
polícia militar o governo corre sério risco de queda. Tudo estaria a explicar a
desatenção daquela frente a esta.
Ultraliberalismo. Entendendo-se a doutrina
do ultraliberalismo norte-americano e inglês, que é neoliberal na economia,
neointervencionista no plano internacional e neoconservador no campo penal –
Supiot: 2011, p. 31 e ss.; Svampa: 2010, p. 21 e ss., fica mais fácil
compreender não só a descontrolada expansão do direito penal como,
paradoxalmente, o tratamento diferenciado e discriminatório da polícia civil e
científica. O ultraliberalismo é pai do neoconservadorismo, que constitui
expressão do modelo de um direito penal (tendencialmente) autoritário (direito
penal máximo) (Pegoraro: 2011, p. 23; O’Malley: 2006, p. 155 e ss.).
O neoconservadorismo difundido nas últimas
décadas (especialmente a partir dos anos 70, do século XX), sob a regência, em
primeiro lugar, do discurso do movimento da lei e da ordem e, agora, do
populismo penal, é tido como o principal desencadeador do chamado “grande
encarceramento” (Pavarini: 2009, p. 28).
Racionalidades do neoliberalismo. No plano
econômico as racionalidades do neoliberalismo são as seguintes: predomínio dos
valores de mercado (abertura do mercado), de ascensão individual, de competição
e de mercantilização – privatização – dos espaços e dos setores públicos,
redução dos programas assistencialistas (retomados com o governo Lula),
revalorização da “meritocracia” individualista (self made man),
desconsiderando-se as estruturas sociais, reforma gerencial do Estado, políticas
sociais terceirizadas, não universalização dos direitos, exclusão da
participação popular nas decisões públicas, aproximação da política aos valores
religiosos, sujeição forte aos organismos internacionais, fusão e concentração
de empresas, domínio econômico da grande mídia, liberalização do mercado
financeiro etc.
Estrangulamento do serviço público. O Estado
brasileiro, com destaque para o Estado de São Paulo, ao seguir a cartilha
neoliberal, fez o enxugamento de todos os serviços públicos, incluindo-se a
polícia civil. É isso que explica, em grande parte, as péssimas condições de
trabalho da polícia, dos professores, dos médicos públicos etc., a falta de
meios materiais, o isolamento da polícia civil das demais carreiras jurídicas do
Estado etc. O serviço público foi desvalorizado, porque o que dá visibilidade é
obra, incluindo-se aqui a construção de presídios, em detrimento das escolas e
dos serviços mais essenciais (saúde, educação, justiça etc.).
Desestímulo crônico. A polícia civil faz
concursos contínuos, mas perde grande parcela dos candidatos para outras
carreiras ou outros Estados, que remuneram melhor o policial. “Crime se combate
com inteligência, não com truculência ou com redobrada violência. Hoje, cerca de
90% dos crimes não são investigados por falta de recursos materiais e humanos,
por falta de investimentos e de claro protecionismo. O desestímulo na carreira é
crônico” (Marilda Pansonato Pinheiro, em Folha de S. Paulo de 15.11.12, p. A3).
Morrendo 10 pessoas por dia, a situação não está sob controle. Todo incentivo ao
confronto não soluciona nada, só gera mais violência. O “quem não reagiu está
vivo” está se transformando no reagindo ou não reagindo você está morto.
Qualquer sinal verde para a violência a deixa sem controle.
Referências
Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.
São Paulo: Boitempo, 2005.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Derechos,
seguridad y policía. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2009.
CALVEIRO, Pilar. Violencias de estado:
la guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de control
global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012.
MINHOTO, Laurindo D. O Estado de São
Paulo, 14 out. 2012, p. J3.
O’MALLEY, Pat. Riesgo, neoliberalismo y
justicia penal. v. 5. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2006.
PAVARINI, Massimo. Castigar al enemigo.
Criminalidad, exclusión e inseguridad, v. 8. Quito: Flacso,
2009.
PEGORARO, Juan S. La política penal de la
defensa social. Em: GUTIÉRREZ, Mariano. Populismo punitivo y justicia
expresiva. Buenos Aires: Fabián J. Di Plácido Editor, 2011.
PINHEIRO, Marilda Pansonato. Folha de São
Paulo, 15 nov. 2012, p. A3.
SUPIOT, Alain. El espíritu de Filadelfia:
la justicia social frente al mercado total. v. 430. Barcelona:
Ediciones Península, 2011.
SVAMPA, Maristella. La sociedad
excluyente: la Argentina bajo el signo del neoliberalismo. Buenos Aires:
Taurus, 2010.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos
mortos. São Paulo: Saraiva, 2012a.
*LFG – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG.
Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do
atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de
Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999
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