domingo, 7 de julho de 2013

Os “mistérios” do Ministério Público investigador - Cezar Roberto Bitencourt


PARTE III

6. Os “mistérios” do Ministério Público investigador

Finalmente, com uma campanha maciça e mais agressiva foi veiculado nos meios de comunicação, especialmente em São Paulo, o seguinte slogan: “com o Ministério Público não há Mistério”! Esse slogan traz em seu bojo, no mínimo, a insinuação de que a outras instituições falta transparência, prejudicando a confiabilidade.

Realmente, além de uma grande jogada de marketing usado no Estado de São Paulo, referido slogan traz em seu bojo, pelo menos, a insinuação de que em outras instituições a ausência de transparência prejudica a confiabilidade e eficiência. No entanto, a assertiva que “transparece” no slogan não é verdadeira, no campo criminal, cujas investigações realizadas pelo Ministério Público são sempre “envoltas em ministérios”, passando-se meses e, às vezes, até anos (enquanto a polícia tem prazo limitado para concluir as investigações e necessita de autorização para prorrogá-lo), investigando sigilosamente, sem que os investigados/acusados tenham conhecimento, ao arrepio do texto constitucional que assegura o contraditório e a ampla defesa a qualquer cidadão que seja em geral “acusado” (art. 5º, inciso LV, CF). Ignora-se que as investigações criminais deverão ter, no mínimo, um prazo razoável para concluir-se, sendo vedado ao Estado, independentemente dos órgãos ou instituições que utilize, eternizar-se na invasão da privacidade/liberdade de qualquer cidadão, haja ou não suspeita de alguma irregularidade. Em prazo razoável , devem os organismos do sistema repressivo estatal chegar a alguma conclusão.

Com efeito, contrariando referido slogan, pode-se afirmar que os “Mistérios” do Ministério Público investigador-criminal podem ser sintetizados nos seguintes:

a) – o Ministério Público não investiga todos os fatos – os próprios defensores do poder investigatório criminal do Ministério Público reconhecem que não há interesse e nem possibilidade de o Parquet assumir a investigação de todos os fatos.

O Ministério Público reconhece que não teria condições materiais de abarcar toda a investigação criminal, limitando-se a atuar em um ou outro caso, “quando o interesse público exigir”, mas, desarrazoadamente, quem definiria quando se faz presente a “exigência do interesse público” seria o próprio Parquet. Em suma, quer-se, no fundo, escolher os casos penais a investigar, que a prática tem demonstrado, são os casos rumorosos e de grande repercussão na mídia, o que resulta completamente absurdo, inclusive pela falta de condições materiais, especialmente de proteção física dos próprios órgãos do Ministério Público e aos seus.

Realmente, o Ministério Público somente tem interesse de investigar aqueles casos que, por uma razão ou outra, rende muitos dividendos na grande mídia. Essa voracidade pela mídia, tem levado, inclusive, alguns de seus membros lançarem boatos na imprensa e, após, invocarem os próprios boatos como fundamento de investigação criminal que fazem, atropelando os princípios éticos que devem orientar a postura de qualquer Autoridade Pública, e especialmente quem se arvora como único detentor do patrimônio ético nacional. Com efeito, o Ministério Público, com freqüência indesejável, divulga as investigações, mesmo as taxadas de “sigilosas”, primeiro para a mídia, de tal forma que o investigado e seu defensor são surpreendidos pelos meios de comunicação, antes de serem oficialmente cientificados dos atos processuais.

Em síntese, o Ministério Público não investiga os fatos, investiga somente aquilo que quer provar, isto é, somente colhe indícios e subsídios que interessem à sua tese, e não à verdade dos fatos.

b) – não admite controle jurisdicional de seus atos investigatórios – esse é seguramente um de seus maiores equívocos em um Estado Democrático de Direito, ignorando o texto constitucional que assegura “aos acusados em geral” a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV, CF). Aliás, a Resolução n. 13 editada pelo CNMP, em seu artigo 6º, § 1º, afasta a quebra de sigilo determinada pelo Ministério Público do crivo do próprio Poder Judiciário, como destacamos mais adiante. Esse “mistério” das investigações do MP é complementado com o seguinte.

c) – todas as investigações realizadas pelo Ministério Público são, segundo seus próprios membros, sigilosas - basicamente em todas as investigações realizadas pelo MP tem sido invocado sigilo, inclusive para o investigado e seu advogado. Investigações procedidas em locais e horários impróprios, sem mandado judicial, tem sido levado a efeito.

Em outros termos, o Ministério Público, o quotidiano tem demonstrado isso, não admite que o defensor tenha acesso aos elementos das investigações, numa demonstração clara de sua dificuldade de atuar transparentemente em um Estado Democrático de Direito. Interroga os investigados sem dar-lhes ciência dos fatos de que estão sendo suspeitos ou acusados. Recentemente, o Ministro Sepúlveda pertence, no emblemático HC 82.354-8/PR, declarou que o eventual sigilo, quando a lei permite, não abrange o investigado e seu advogado, que, constitucionalmente, têm direito e prerrogativa de serem previamente cientificados. Destacamos, por sua pertinência, parte da ementa desse writ:

“ I. (...)
II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial.
1. (...)
2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.
3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.
4. (...)” (STF, 1ª Turma, (HC. 82.354-8/PR, unânime, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 10 de agosto de 2004).

Finalmente, precisamos saudar, o STF manifestou-se especificamente sobre esses abusos que, nos últimos anos, haviam feito letra morta do texto constitucional, procedimento, que, aliás, o Ministério Público tem sido multirreincidente. Mutatis mutandis, o entendimento adotado para o inquérito policial, aplica-se a todos os eventuais procedimentos investigatórios criminais, sejam em que âmbito for. Enfim, é preciso repensar os poderes investigatórios exercidos pelo Ministério Público. Hoje, o cidadão investigado não tem nenhuma proteção diante do ilimitado poder que a Instituição arvora-se dispor. Estamos assistindo à disseminação do abuso e o cidadão está perdendo a possibilidade de invocar, a seu favor, as garantias constitucionais que são constantemente violadas, inclusive com impedimento do crivo do Judiciário, como prevê o § 1º do art. 6º da Resolução n. 13, recentemente editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, conforme demonstraremos adiante.

Nessa linha, curvando-nos a bem elaborada pesquisa de Luis Guilherme Vieira, invocamos novamente o “Recurso Ordinário de HC n. 81.326-7 , a 2ª Turma do STF que, unanimemente, sob o voto condutor do Min. Nelson Jobim, decidiu que o Ministério Público não possui atribuições para realizar, diretamente, investigação de caráter criminal. Esse julgamento passou a ser o paradigma de muitas outras decisões de tribunais de todo o país que, antes com algumas hesitações, e posteriormente com mais segurança vêm consagrando o mesmo entendimento. Em seu voto, o Min. Jobim destaca que, historicamente, no direito processual penal brasileiro, as atribuições para realizar as investigações preparatórias da ação penal têm sido da polícia, pelas mais diversas razões, as quais têm prevalecido a ponto de todas as iniciativas no sentido de mudar as regras, nessa matéria, terem sido repelidas, desde a proposta de instituir Juizados de Instrução feita pelo então Ministro da Justiça, Dr. Vicente Ráo, em 1935, passando pela elaboração da Constituição de 1988, da lei complementar relativa ao Ministério Público, em 1993, até propostas de emendas constitucionais em 1995 e 1999, com o objetivo de dar atribuições investigatórias ao Parquet”.
Na verdade, como lembra Luis Guilherme, o legislador brasileiro - constituinte e ordinário - sempre rejeitou a idéia de transformar o Ministério Público em “Grande Inquisidor”, reservando-lhe o papel superior de controlador/fiscalizador das atividades policiais. Por isso, o Min. Jobim afirma, acertadamente, que a mens legis das normas em vigor é, seguramente, no sentido de manter as investigações criminais como atribuição exclusiva da polícia judiciária .

7. A doutrina dos poderes implícitos

Argumenta-se, para se reconhecer poderes investigatórios criminais ao Ministério Público, que, implicitamente, estariam recepcionados pelo art. 129 da Constituição, e mesmo que se entenda que a Constituição não lhe tenha conferido expressamente os tais poderes, deve-se aplicar a doutrina dos poderes implícitos, considerando-se que se a Constituição assegura-lhe a competência privativa para promover a ação penal pública, deve, igualmente, garantir-lhe os meios necessários para tal fim.

A conhecida doutrina dos poderes implícitos tem suas origens na escola clássica do constitucionalismo norte-americano, radicada na concepção do Estado liberal. Trata-se de regra de interpretação, concebida no seio da Constituição americana, e como atribuía amplos poderes ao governo dos Estados Unidos, necessitava assegurar-lhe também os mais amplos meios para sua execução. Essa doutrina constitucional, no entanto, afasta a aplicação da doutrina dos poderes implícitos quando houver outra norma constitucional que cuide da competência que se pretende reconhecer implicitamente. Em outros termos, somente se admite a invocação dessa regra de interpretação onde houver lacuna constitucional, ou então, quando houver uma competência explícita e justificável que se pretenda aprofundar e não alargar.
No caso, porém, não se verifica nenhuma das duas hipóteses. Primeiramente, não há lacuna constitucional na competência em questão. A norma do art. 144 da Constituição da República atribui expressamente a função de polícia judiciária às polícias civis, federal e estaduais. Sendo assim, a Constituição indicou a Instituição, resultando impossível atribuí-la indistintamente a outro órgão, sem que o próprio legislador constituinte o tenha feito. Em segundo lugar, não se cuidaria de aprofundar competência do Ministério Público, mas de criá-la, uma vez que, expressamente, a Constituição não atribuiu poderes investigatórios ao órgão ministerial, no âmbito processual penal. Aplicável, no caso, a incensurável lição de Canotilho que sentencia: "A força normativa da Constituição é incompatível com a existência de competências não escritas salvo no caso de a própria Constituição autorizar o legislador a alargar o leque de competências normativo constitucionalmente especificado”.

Em síntese, poderes implícitos só podem existir quando a Constituição for omissa, isto é, quando não conferir os meios expressamente em favor do titular ou em favor de outra autoridade, órgão ou instituição. Se, no entanto, expressamente outorgar a quem quer que seja o que se tem como meio para atingir o fim pretendido, não se pode falar em poderes implícitos . Não há poder implícito onde este foi explicitado, expressamente estabelecido, mesmo que tenha sido em favor de outra instituição. Enfim, o poder implícito somente pode ser reconhecido quando a Constituição não disciplina a matéria: a competência que é atribuída a um órgão, não pode ser invocada por outro, sob nenhum pretexto, como acremente sentencia Canotilho : “Mas são claros os limites dos poderes implícitos: eles não podem subverter a separação e a interdependência dos órgãos de soberania constitucionalmente estabelecida, estando em especial excluída a possibilidade de eles afetarem poderes especificamente atribuídos a outros órgãos:

Com efeito, não é uma opção sustentável a importação da doutrina dos poderes implícitos para nosso Estado constitucional, especialmente no caso sub examen. Necessariamente, destaca José Afonso da Silva, deve-se questionar se há entre a investigação preliminar e a ação penal uma relação de meio e fim. O meio para o exercício da ação penal consiste no aparato institucional com a habilitação, competência adequada e condições materiais para fazê-lo. O fim (finalidade, objetivo) da investigação penal, por sua vez, não é a ação penal, mas a apuração da autoria do delito, de suas causas, de suas circunstâncias. O resultado dessa apuração constituirá a instrução documental - o inquérito - (daí, tecnicamente, instrução penal preliminar) para fundamentar a ação penal e serve de base para a instrução penal definitiva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário