terça-feira, 16 de novembro de 2010


O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, estabelece que o Direito Penal só deve preocupar-se com a proteção dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade, ou seja, deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se insuficientes para a tutela desses bens.
Nesse diapasão, percebe-se que tal princípio penal finca suas bases na fragmentariedade e subsidiariedade, o que vem ao encontro do proclamado pelo direito penal mínimo, abolicionista.
È fragmentário posto que somente os bens jurídicos mais relevantes mereçam proteção penal, tudo que não for considerado ataque intolerável a um bem jurídico, poderá ser tutelado pelos demais ramos do direito (administrativo, civil, ambietal), aqui reside seu caráter subsidiário (ultima ratio).  Assim a tutela penal deve ser reservada ao que traz perturbação  social.
Como se depreende, tal princípio preconiza que a atuação estatal na esfera penal deverá limitar-se às situações em que ocorra efetiva lesão ou perigo (concreto) de lesão ao bem jurídico tutelado, dentro do estritamente necessário.
Nessa seara exsurge o delito de bagatela, o qual subdivide-se em bagatelar próprio e bagatelar impróprio.
O delito bagatelar próprio pode ser entendido como aquele que já nasce sem nenhuma relevância penal, seja pela idoneidade ofensiva relevante, seja pela ausência de periculosidade na conduta, em outras palavras, não há desvalor da conduta, v.g: jogar uma bola de papel em um transeunte; ou ainda por não se tratar de ataque intolerável a bem jurídico, em outras palavras, não há desvalor do resultado,  v.g: furtar uma caixa de fósforos, um pote de margarina, etc.
Em se tratando de delito bagatelar impróprio, este nasce relevante para o direito penal, já que há desvalor da conduta e do resultado, mas percebe-se posteriormente, ante as circunstâncias concretas, que a aplicação de qualquer tipo de pena torna-se desnecessária, aqui se fala em “irrelevância penal do fato”, o que não se confunde com o princípio da insignificância (este atrelado ao delito de bagatela próprio).
A primeira classe de delitos está regida pelo princípio da insignificância, o que torna o fato atípico. A fim de corroborar tal entendimento:
Os delitos de bagatela impróprios, por sua vez, estão regidos pelo princípio da irrelevância penal do fato, o qual levará à dispensa da aplicação da pena na sentença, como ocorre no perdão judicial.

Neste sentido, STF/HC 96376 / PR – Julgamento em 31/08/2010:
EMENTA: Habeas Corpus. Descaminho. Imposto não pago na importação de mercadorias. Irrelevância administrativa da conduta. Parâmetro: art. 20 da Lei n° 10.522/02. Incidência do princípio da insignificância. Atipicidade da conduta. Ordem concedida. A importação de mercadoria, iludindo o pagamento do imposto em valor inferior ao definido no art. 20 da Lei n° 10.522/02, consubstancia conduta atípica, dada a incidência do princípio da insignificância. O montante de impostos supostamente devido pelo paciente (R$ 189,06) é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a referência a outros débitos congêneres em seu desfavor. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. Princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. Precedentes. Ordem concedida para o trancamento da ação penal de origem.
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - RES FURTIVA NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO - O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (STF - HC 84412 - SP - 2ª T. - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 19.11.2004)
Concordamos com o entendimento segundo o qual, “quem comete um furto de pequeno valor (portanto, não se trata de fato insignificante), depois de já ter sido responsável e condenado por outros fatos semelhantes, não faz jus tampouco ao princípio da irrelevância penal do fato, porque nesse caso não se trata de uma infração bagatelar imprópria, isto é, a pena, no caso, é necessária. Nem se trata de infração bagatelar própria, em outras palavras o fato não é atípico.
Portanto, no caso de furtos de pequeno valor (não insignificante) e possuindo o agente primariedade, bons antecedentes, etc. fará jus à aplicação do princípio da irrelevância penal do fato, o qual em tese dispensaria a aplicação da pena na sentença.
Seja no caso da irrelevância penal do fato, seja em razão do princípio da insignificância, é medida de direito o arquivamento das investigações e ou o não recebimento de eventual denúncia, no primeiro caso com base no art.43 Inc. III posto não haver justa causa para a ação e no segundo caso com base no art. 43 Inc. I tendo em vista que o fato narrado não constituirá crime.
Diante de todo o exposto, acredita-se que se eventualmente a autoridade policial estiver diante de um crime bagatelar PRÓPRIO, não deverá autuar em flagrante, posto se tratar de fato atípico, quando muito, deverá formalizar o fato e encaminhar os autos ao Juízo da Comarca sugerindo o arquivamento com supedâneo nos argumentos já exaustivamente expandidos neste texto.
Se porventura houver autuação em flagrante pela autoridade policial, não deverá o parquet oferecer denúncia e se este o fizer, não poderá o juiz recebê-la, caso contrário restará ao ofendido impetrar HC a fim de trancar a ação penal.

Bibliografia:
GRECO, Rogério. Direito Penal - Parte Geral. 2 ed. Niterói: Impetus, 2006.
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal - Parte Geral. 3 ed. São Paulo: RT, 2006.
BITENCOURT, Cezar Roberto – Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Ed. Saraiva. 2008.
Luís Flávio Gomes: Delito de bagatela, princípio da insignificância e irrelevância do fato; Acesso em 16/11/2010. Disponível em:

Por: Márcio Dominici, Delegado de Polícia, especialista em Ciências Criminais, Vice Presidente para Região Sul - Adepol..

 

Um comentário:

  1. José Raimundo Batalha Jardimterça-feira, novembro 16, 2010

    Primeiramente cumprimento os colegas idealizadores deste blog que é sem dúvida um novo espaço virtual de debates, informação e formação de ideias voltadas para a classe dos delegados de polícia do Maranhão. De a muito precisávamos de um espaço como este e eu particularmente anseiava que o site da ADEPOL/MA tomasse a vanguarda nesse sentido, de modo que cheguei a sugerir emenda (que foi acolhida) na Chapa do colega Jerferson Portela na recente eleição para presidência da nossa Associação. Para o progresso exitoso do blog é interessante a participação de todos os Delegados, com críticas respeitadoras, análises e sugestões.
    A Polícia Civil do Maranhão passa por um momento delicado, com o império de ímpetos pessoais, egos altamente inflados e inflamados, disputas dissimuladas e apegos exacerbados por cargos em detrimento da própria instituição e da relação cordial entre os colegas, coisas, enfim, que afetam o funcionamento da instituição e que deveriam ser alvo de reflexão e mudança de seus autores.
    Assim, desejo que este blog seja a luz para esta e outras ordens de reflexões para que nós todos, juntos, possamos construir uma Polícia Civil melhor para nós e para a sociedade, que muito espera e muito precisa da nossa instituição neste momento em que a violência se tornou uma das maiores preocupações nacionais.
    No mais, cumprimento, parabenizando o colega Dominici pela colaboração doutrinária manifesta no texto “O Delegado de Polícia e as infrações de bagatela”, bem como destaco o post “ilusões, pretensões e desilusões” e o comentário do colega Delegado Sebastião Uchoa, os quais certamente devem ser lido e relido por todos nós e por todos aqueles que tem posição de gestão na polícia.
    Abraços Fraternos,
    José Raimundo Batalha Jardim - Delegado

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