Ministério Público precisa conhecer seus limites
[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo desta sexta-feira (24/12)]
Nunca é demais lembrar que o Ministério Público (MP) é um dos responsáveis pela manutenção da ordem jurídica e obediência aos ditames da nossa Carta Magna. Desta forma, não se pode admitir que, sob o pretexto de promover o bem comum e comprovar cometimento de ilícitos pelos cidadãos, o MP possa atropelar as garantias e os direitos fundamentais resguardados em nossa Constituição federal.
É louvável, portanto, a decisão proferida recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)nos autos da Suspensão de Segurança n.º 2.382. A questão teve início com a instauração, pelo Ministério Público paulista, de inquérito civil com a finalidade de apurar notícias de irregularidades praticadas por membros da Igreja Universal do Reino de Deus. Durante as investigações, o MP expediu solicitação de assistência legal mútua entre Brasil e EUA, a fim de que as autoridades destinatárias do pedido de cooperação providenciassem informações relativas a operações bancárias indicadas como ilícitas pelo inquérito.
O pedido de cooperação, todavia, não teve autorização prévia da Justiça brasileira, partindo diretamente do MP para o exterior. Em outras palavras, a intenção do MP era obter a quebra do sigilo bancário dessas pessoas no exterior sem que antes obtivesse autorização da Justiça.
A Igreja Universal impetrou mandado de segurança contra ato do promotor de Justiça da 9.ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social de São Paulo. Pediu, ainda, a cassação da solicitação de assistência legal, argumentando que a quebra de sigilo bancário depende de prévia autorização judicial. Em primeiro grau, a ordem foi concedida para tornar nulo o teor da solicitação de assistência mútua, que objetiva a quebra do sigilo bancário. A decisão considerou que o pedido não continha a prévia e necessária autorização judicial.
O MP pediu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) a suspensão da sentença. Segundo afirmou, a investigação visa a apurar a utilização indevida de entidades de fins religiosos, inclusive com desvio de valores para enriquecimento de particulares. O MP explicou, ainda, que a assistência solicitada consistiu na apreensão ou no congelamento de bens e quebra do sigilo de contas bancárias declinadas, com o fornecimento de documentos dos investigados a partir do ano de 1992.
A sentença foi mantida. O TJSP considerou que, por mais relevantes que sejam os fatos objeto de investigação, as providências iniciadas por meio da cooperação judicial não podem deixar de observar os procedimentos e as restrições legais vigentes nos países parceiros, principalmente quando puderem resultar na obtenção de informações pessoais e sigilosas relacionadas à vida privada e à intimidade. Inconformado, o MP recorreu ao STJ, com pedido de suspensão de segurança, alegando grave lesão à ordem pública.
Ao se deparar com um desses cada vez mais constantes abusos por alguns promotores, o ministro Ari Pargendler entendeu por determinar imediatamente a suspensão da cooperação jurídica firmada pelo MP sem prévia autorização judicial, reafirmando, assim, o entendimento de que o Ministério Público não pode violar o direito ao sigilo bancário dos indivíduos sem que, para tanto, previamente requisite e, principalmente, obtenha expressa autorização judicial. A decisão serviu para demonstrar que o MP também está adstrito à tripartição das funções do poder estatal, não podendo desrespeitar as normas legais e devendo se submeter às ordens que emanam do Poder Judiciário.
O caso em questão desperta ainda mais a atenção porque se tratava de uma investigação no exterior, onde o MP buscava obter do governo do EUA a quebra de sigilo bancário dos investigados no Brasil, contudo, sem a devida autorização de autoridade judicial brasileira. Vale lembrar que as cooperações internacionais vêm sendo comumente utilizadas pelo MP tanto no âmbito criminal como no civil, e esta decisão, de forma correta, impôs clara e devida limitação ao poderes do Ministério Público.
Bem afirmou o ilustre presidente do STJ, ministro Ari Pargendler, que "salvo melhor juízo, a autoridade brasileira (no caso, o Ministério Público), portanto, não pode obter no exterior, pela via da colaboração jurídica internacional, o que lhe está vedado, no exercício da competência própria, no País. Sob esse viés, parece temerário autorizar o MP a solicitar a quebra de sigilo bancário no exterior, sabido que no Brasil essa providência depende de ordem judicial. Tanto mais que a quebra do sigilo bancário é fato irreversível, e que, portanto, caracteriza o perigo inverso: o de que o sigilo bancário seja quebrado e posteriormente declarado ilegal."
Contudo, em sede de reconsideração, entendeu o ministro por permitir que a cooperação se desse sem a anuência do Judiciário brasileiro. O fundamento para reconsiderar a decisão inaugural foi de que competiria às autoridades estrangeiras, com base em sua legislação, apreciar o pedido de quebra de sigilos. Não concordamos, com a devida vênia, com esse argumento, notadamente quando, como ocorria naquele caso, o objeto da investigação é cidadão brasileiro e os atos a ele atribuídos tiveram sido aqui praticados. O MP deveria não só observar as regras do Estado estrangeiro, como também as vigentes no Brasil, sob pena de cometer nulidades e infrações à nossa Constituição.
No caso aqui mencionado, a discussão acabou não sendo concluída. Ao ser informado pela parte interessada de que a ação penal em que seriam utilizadas as informações obtidas via cooperação internacional foi anulada pelo TJSP, o ministro relator do STJ novamente suspendeu a cooperação, abrindo prazo para que o MP se manifestasse. Embora ainda não haja uma decisão final do STJ, o posicionamento apontado na decisão inaugural deve ser visto com bons olhos, haja vista que reforça o entendimento de que a atuação do MP se deve dar em estrita observância aos preceitos constitucionais, sob pena de ser rechaçada judicialmente
Nunca é demais lembrar que o Ministério Público (MP) é um dos responsáveis pela manutenção da ordem jurídica e obediência aos ditames da nossa Carta Magna. Desta forma, não se pode admitir que, sob o pretexto de promover o bem comum e comprovar cometimento de ilícitos pelos cidadãos, o MP possa atropelar as garantias e os direitos fundamentais resguardados em nossa Constituição federal.
É louvável, portanto, a decisão proferida recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)nos autos da Suspensão de Segurança n.º 2.382. A questão teve início com a instauração, pelo Ministério Público paulista, de inquérito civil com a finalidade de apurar notícias de irregularidades praticadas por membros da Igreja Universal do Reino de Deus. Durante as investigações, o MP expediu solicitação de assistência legal mútua entre Brasil e EUA, a fim de que as autoridades destinatárias do pedido de cooperação providenciassem informações relativas a operações bancárias indicadas como ilícitas pelo inquérito.
O pedido de cooperação, todavia, não teve autorização prévia da Justiça brasileira, partindo diretamente do MP para o exterior. Em outras palavras, a intenção do MP era obter a quebra do sigilo bancário dessas pessoas no exterior sem que antes obtivesse autorização da Justiça.
A Igreja Universal impetrou mandado de segurança contra ato do promotor de Justiça da 9.ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social de São Paulo. Pediu, ainda, a cassação da solicitação de assistência legal, argumentando que a quebra de sigilo bancário depende de prévia autorização judicial. Em primeiro grau, a ordem foi concedida para tornar nulo o teor da solicitação de assistência mútua, que objetiva a quebra do sigilo bancário. A decisão considerou que o pedido não continha a prévia e necessária autorização judicial.
O MP pediu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) a suspensão da sentença. Segundo afirmou, a investigação visa a apurar a utilização indevida de entidades de fins religiosos, inclusive com desvio de valores para enriquecimento de particulares. O MP explicou, ainda, que a assistência solicitada consistiu na apreensão ou no congelamento de bens e quebra do sigilo de contas bancárias declinadas, com o fornecimento de documentos dos investigados a partir do ano de 1992.
A sentença foi mantida. O TJSP considerou que, por mais relevantes que sejam os fatos objeto de investigação, as providências iniciadas por meio da cooperação judicial não podem deixar de observar os procedimentos e as restrições legais vigentes nos países parceiros, principalmente quando puderem resultar na obtenção de informações pessoais e sigilosas relacionadas à vida privada e à intimidade. Inconformado, o MP recorreu ao STJ, com pedido de suspensão de segurança, alegando grave lesão à ordem pública.
Ao se deparar com um desses cada vez mais constantes abusos por alguns promotores, o ministro Ari Pargendler entendeu por determinar imediatamente a suspensão da cooperação jurídica firmada pelo MP sem prévia autorização judicial, reafirmando, assim, o entendimento de que o Ministério Público não pode violar o direito ao sigilo bancário dos indivíduos sem que, para tanto, previamente requisite e, principalmente, obtenha expressa autorização judicial. A decisão serviu para demonstrar que o MP também está adstrito à tripartição das funções do poder estatal, não podendo desrespeitar as normas legais e devendo se submeter às ordens que emanam do Poder Judiciário.
O caso em questão desperta ainda mais a atenção porque se tratava de uma investigação no exterior, onde o MP buscava obter do governo do EUA a quebra de sigilo bancário dos investigados no Brasil, contudo, sem a devida autorização de autoridade judicial brasileira. Vale lembrar que as cooperações internacionais vêm sendo comumente utilizadas pelo MP tanto no âmbito criminal como no civil, e esta decisão, de forma correta, impôs clara e devida limitação ao poderes do Ministério Público.
Bem afirmou o ilustre presidente do STJ, ministro Ari Pargendler, que "salvo melhor juízo, a autoridade brasileira (no caso, o Ministério Público), portanto, não pode obter no exterior, pela via da colaboração jurídica internacional, o que lhe está vedado, no exercício da competência própria, no País. Sob esse viés, parece temerário autorizar o MP a solicitar a quebra de sigilo bancário no exterior, sabido que no Brasil essa providência depende de ordem judicial. Tanto mais que a quebra do sigilo bancário é fato irreversível, e que, portanto, caracteriza o perigo inverso: o de que o sigilo bancário seja quebrado e posteriormente declarado ilegal."
Contudo, em sede de reconsideração, entendeu o ministro por permitir que a cooperação se desse sem a anuência do Judiciário brasileiro. O fundamento para reconsiderar a decisão inaugural foi de que competiria às autoridades estrangeiras, com base em sua legislação, apreciar o pedido de quebra de sigilos. Não concordamos, com a devida vênia, com esse argumento, notadamente quando, como ocorria naquele caso, o objeto da investigação é cidadão brasileiro e os atos a ele atribuídos tiveram sido aqui praticados. O MP deveria não só observar as regras do Estado estrangeiro, como também as vigentes no Brasil, sob pena de cometer nulidades e infrações à nossa Constituição.
No caso aqui mencionado, a discussão acabou não sendo concluída. Ao ser informado pela parte interessada de que a ação penal em que seriam utilizadas as informações obtidas via cooperação internacional foi anulada pelo TJSP, o ministro relator do STJ novamente suspendeu a cooperação, abrindo prazo para que o MP se manifestasse. Embora ainda não haja uma decisão final do STJ, o posicionamento apontado na decisão inaugural deve ser visto com bons olhos, haja vista que reforça o entendimento de que a atuação do MP se deve dar em estrita observância aos preceitos constitucionais, sob pena de ser rechaçada judicialmente
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