"Discussão sobre investigação
pelo MP é maniqueísta"
O Código Penal tipifica uma quantidade quase infinita de delitos, mas
nas varas e tribunais do país, os juízes julgam praticamente seis crimes:
tráfico, homicídio, roubo, furto, estelionato e estupro. E metade é tráfico.
Enquanto legisladores e juristas discutem a ampliação ainda maior dos tipos
penais, o juiz Guilherme de Souza Nucci aponta para o que está
à vista de todos que não querem enxergar: não é mudando a lei que muda o mundo
Quando se trata de matéria criminal, é aconselhável prestar atenção no
que Nucci fala. Professor de Direito Penal da PUC-SP, autor de 29 livros sobre
os mais diferentes aspectos da matéria, ele se tornou referência no assunto e
um dos doutrinadores mais citados sempre que está em julgamento um caso
criminal.
Quem acompanhou o julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal
Federal ouviu seu nome e suas teses serem citadas tanto pelo procurador-geral
na acusação quanto pelos advogados de defesa e pelos ministros, durante os
debates do julgamento.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Nucci revelou
que, no julgamento do mensalão, a situação se inverteu: ele é que esteve atento
aos debates para tirar suas próprias lições. “O julgamento do mensalão trouxe
para o Brasil um avanço muito grande em nível penal porque pela primeira vez o
STF fixou uma pena em caráter originário pelos onze ministros. É uma coisa
histórica”, analisa.
Uma das principais lições que tirou dali, conta, foi quanto à definição
de que as atenuantes e agravantes afetam a pena-base em um sexto. Ele explica
que já era uma jurisprudência majoritária, até porque o Código Penal usa com
frequência a medida “um sexto”. Mas não há definição expressa quanto a
atenuantes e agravantes. “Agora temos um parâmetro.”
Outra lição que tirou do mensalão foi quanto ao prejuízo causado ao país
pela prerrogativa de foro por função. Pela regra constitucional, membros do
governo federal e do Congresso Nacional devem ser julgados originariamente pelo
Supremo Tribunal Federal. Guilherme Nucci é contra. Acha que o sistema é antidemocrático.
“Não vejo nenhum sentido em qualquer autoridade ter direito a um foro
específico, especial”, afirma.
Nucci não esconde sua opinião sobre assuntos polêmicos. Problema
estrutural tanto da área penal quanto na de segurança pública, a superlotação
dos presídios é motivo de preocupação para o juiz. Tema que está para ser
definido pelo Supremo é o que fazer com o preso que, do regime fechado,
progride para o semiaberto, mas não encontra vagas. Alguns entendem que deve
continuar preso. Outros, que vá para o regime aberto diretamente. Guilherme
Nucci não tem dúvidas: deve ir para o aberto diretamente. “Não tem vaga, mas o
que o preso tem com isso? O que é que o indivíduo tem com a inépcia estatal?”,
diz. Ele acredita que o juiz não deve se preocupar com o problema da falta de
vagas, pois essa é uma questão para o Executivo, o responsável pela
administração penitenciária, resolver. “Eu sou juiz, não tenho que resolver
isso, tenho é que aplicar a lei. E a lei fala que ele tem de ir para o
semiaberto, então ele tem de ir para fora da cadeia.”
Sobre outro tema polêmico, se o Ministério Público tem poder de
investigação em matéria penal, ele também tem opinião formada: "Não, não e
não". Guilherme Nucci é juiz há 25 anos. Atualmente, é juiz convocado no
Tribunal de Justiça de São Paulo. Grande especialista em Direito
Processual Penal, é livre-docente no tema pela PUC-SP. Também é professor da
matéria na Faculdade de Direito da PUC. Mas, aos 51 anos, sua profusão de quase
30 livros não se limita a Processo Penal, como bem demonstra uma breve relação
dos seus títulos: Individualização da Pena, Código de Processo Penal
Comentado, Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais, Provas no
Processo Penal eCrimes Contra a Dignidade Sexual.
Leia abaixo a entrevista com o juiz Guilherme de Souza Nucci:
ConJur — O Ministério Público pode investigar?
Guilherme Nucci — Sozinho, não. O próprio promotor abre
investigação no gabinete, colhe tudo, não dá satisfação para ninguém, e
denuncia. Não. Não e não mesmo. As pessoas estão confundindo as coisas. Ninguém
quer privar o Ministério Público de fazer seu papel constitucional. Estão
divulgando essa questão de uma forma maniqueísta: pode ou não pode investigar?
O MP é bom ou é mau? Isso não existe, é infantil. Ninguém é criança, para achar
que é o legal ou o não-legal, o bacana ou o não-bacana. O que a gente tem de
pensar é o seguinte: o Ministério Público é o controlador da Polícia
Judiciária. Está na Constituição Federal. A Polícia Judiciária, também de
acordo com a Constituição Federal, é quem tem a atribuição da investigação
criminal.
ConJur — Privativamente, não é? A função dela é só essa.
Guilherme Nucci — A polícia existe para isso. Delegados, investigadores, detetives,
agentes da Polícia Federal são pessoas pagas para investigar. E aí o que se
diz? O MP não confia nesse povo, que é tudo corrupto, e nós vamos investigar
sozinhos. Mas e as instituições são jogadas às traças assim? Eu não concordo. A
atividade investigatória foi dada, no Brasil, ao delegado de polícia, concursado,
bacharel em Direito. Não é um xerife, um sujeito da cidade que é bacana e que a
gente elegeu xerife e que portanto não entende nada de Direito. Nossa estrutura
é concursada, democrática, de igual para igual. Não existe isso de “ele é
delegado, então ele é pior; eu sou promotor, sou melhor”. Tem corrupção? Então
vamos em cima dela, vamos limpar, fazer o que for necessário. Agora, não
podemos dizer que, porque a polícia tem uma banda corrupta, devemos tirar a
atribuição dela de investigar e passar para outro órgão.
ConJur — Como se no Ministério Público não tivesse corrupção.
Guilherme Nucci — É o único imaculado do mundo? Não. Polícia investiga, MP acusa,
juiz julga. MP investiga? Lógico. Junto com a polícia. A polícia faz o trabalho
dela e o MP em cima, pede mais provas, requisita diligência, vai junto. Não tem
problema o promotor fazer essas coisas. Ele deve fazer.
ConJur — O que não pode é ele fazer, sozinho, a investigação, é isso?
Guilherme Nucci — É. Dizer “eu quero fazer sozinho”. Por quê? Não registrar o que
faz? Tenho ouvido dizer de muitas pessoas, tanto investigados quanto advogados,
que contam: “Fiquei sabendo que eu estou sendo investigado”. Imagine você,
ficar sabendo porque um vizinho seu foi ouvido. Aí ele chega pra você e fala:
“Pedro, você está devendo alguma coisa? Aconteceu alguma coisa?”. “Não, por
quê?”. “Porque um promotor me chamou ontem”. Aí você contata um advogado amigo
seu e ele vai lá à Promotoria e vê se o promotor te mostra o que ele está
fazendo. “Protocolado. Interno. É meu”. Veja, não é inquérito, portanto não
está previsto em lei. Não tem órgão fiscalizador, não tem juiz, não tem
procurador, ninguém acima dele.
ConJur — Só ele, de ofício, sem dar satisfações
Guilherme Nucci — Ele faz o que ele quiser. Ele requisita informações a seu
respeito, ou testemunhas. Depois joga uma denúncia. Do nada. Mas cadê a
legalidade?! O Supremo já decidiu: tem procuração, pode acompanhar qualquer
inquérito, quanto mais protocolado na Promotoria. Então vamos jogar o jogo:
quer investigar? Quero. Sozinho? É. Então passa uma lei no Congresso. No
mínimo. O ponto é: se o MP quer investigar, tem de editar uma lei federal
dizendo como é que vai ser essa investigação. Quem fiscaliza, quem investiga,
de que forma, qual procedimento etc. para eu poder entrar com Habeas Corpus, se
necessário. O que está errado, hoje, é o MP fazer tudo sozinho. Eu deixo isso
bem claro porque cada vez que a gente vai para uma discussão vem o lado
emocional. Não estamos vendo o mérito e o demérito da instituição. Estamos
falando de um ponto só: o MP não pode investigar sozinho. Ponto final.
ConJur — Em matéria penal, deixando a política de lado, qual a
importância do julgamento do mensalão?
Guilherme Nucci — O julgamento do mensalão trouxe para o Brasil um avanço muito
grande em nível penal porque pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal fixou
uma pena em caráter originário pelos onze ministros. É uma coisa histórica.
Estamos acostumados a ver o STF julgar recursos, Habeas Corpus, mas não fixando
pena, como se fosse um juiz de primeiro grau. E dali tiramos várias lições.
ConJur — Que tipo de lição?
Guilherme Nucci — Coisas controversas, como fixar a pena-base, ou o que levar em
consideração, concretamente, para essa escolha. Quanto vale um atenuante,
quanto vale um agravante. O Supremo teve de passar por todas essas coisas.
ConJur — Consegue citar alguma dessas lições que tenha considerado mais
importante?
Guilherme Nucci — O Supremo entendeu que os agravantes e atenuantes afetam a pena em
um sexto. Já era uma jurisprudência majoritária, mas cada juiz tem um critério,
porque o Código Penal não fixa.
ConJur — Qual a mudança, então?
Guilherme Nucci — A gente não tinha parâmetro. Tem juiz que entende que é um oitavo,
outros entendem que deve afetar em um terço. Alguns aplicam um critério
numérico, como seis meses ou um mês.
ConJur — É possível dizer que a interpretação do Supremo no julgamento
do mensalão permitiu certa flexibilização da valoração das provas?
Guilherme Nucci — Não vejo assim. O que eu vejo é que o Supremo teve de agir como um
juiz age, de valorar a prova pela primeira vez, sem filtragem de nenhum órgão judiciário
antes. A prova indiciária está prevista em lei. Os indícios são provas
indiretas. O que o ministro deixou claro é que estamos usando, no caso ali, a
prova indiciária, que é usada também para outros casos, num roubo simples, num
furto. E que a gente não tem necessariamente de usar para condenar só a prova
direta — aquela em que pessoa que viu o crime diz: “Foi assim”. Então, na
verdade não houve flexibilização.
ConJur — O senhor acha que o caso trouxe à tona aquele sentimento de
punir os réus por causa dos cargos que ocupam ou pelo que representam na
sociedade?
Guilherme Nucci — Não acredito nisso, sinceramente. Como é um julgamento envolvendo
personalidades importantes da República, geralmente baixa esse espírito nas
pessoas ligadas aos réus, até mesmo nos seus defensores, dizendo: “Não tem
prova; os juízes estão julgando de maneira política”. Mas não creio nisso,
sinceramente. Ali é um conjunto de provas, cada um analisa de acordo com o seu
convencimento, de acordo com sua convicção própria. O sistema processual penal
permite que o juiz forme a sua convicção livremente. Não li os autos, então não
posso dizer se há prova do crime ou não, mas não acredito que os ministros
tenham tido motivação política no julgamento. Pelo que acompanho, os julgamentos
do STF, pelo menos em matéria penal, são sempre bastante técnicos.
ConJur — O fato de se ter uma corte suprema julgando uma ação penal
originária influencia nessa conta?
Guilherme Nucci — Na verdade, isso envolve o problema da prerrogativa de função, ou do
foro privilegiado. Sou contra. Não vejo nenhum sentido em qualquer autoridade
ter direito a um foro específico, especial. Acho que deputado, senador, juiz,
promotor, seja quem for, tem que ser julgado por um juiz de primeiro grau. Daí
ele tem direito a recurso para o tribunal, depois para o Superior Tribunal de
Justiça e, se for o caso, para o Supremo. Como qualquer réu.
ConJur — Mas isso não seria uma garantia social, por causa do cargo que
a pessoa com prerrogativa de foro exerce?
Guilherme Nucci — Ora, quem vai para a cadeia não é o cargo, é a pessoa, não é? Em
matéria penal não existe julgamento de cargo, existe o julgamento da pessoa, de
quem cometeu o crime. Não vejo nenhuma subversão de hierarquia. E vamos
ponderar: se um presidente da República, um ministro, um deputado pode se
sentar no primeiro grau na Justiça Trabalhista, na Justiça Civil, porque na
esfera penal a questão não pode ser resolvida pelo primeiro grau?
ConJur — Passa pela questão de que talvez o juiz de primeiro grau tenha
menos qualidade técnica, e por isso alguém com um cargo de representação na
República deva ser julgado por uma corte qualificada?
Guilherme Nucci — Não tem a ver com o fato de o Supremo julgar melhor ou pior. Tem a
ver com o fato de que todos os brasileiros são iguais. Por isso o correto é que
um juiz de primeiro grau tivesse julgado o mensalão, não o Supremo.
ConJur — Alguns réus tentaram.
Guilherme Nucci — Sim, mas veja: por que no mensalão houve grita?
Isso num caso de repercussão vira um problema, mas quando não tem, ninguém
fala. Mas se quer mudar isso, é simples: muda a lei. Quer desmembrar? Vai lá no
Congresso e muda a lei e diz que acabou a conexão quando há uma pessoa que não
tem foro privilegiado.
ConJur — Mas não tem aquela questão de que, com o foro especial, o réu
tem menos possibilidade de recurso?
Guilherme Nucci — Essa é uma questão interessante que meus alunos vivem me
perguntando. Todo réu tem direito ao duplo grau de jurisdição, mas acontece que
todo princípio constitucional tem sua exceção. E se você quer um benefício que
outros não têm, deve abrir mão de alguma coisa. Os detentores de foro
privilegiado, quando fizeram a Constituição Federal, já sabiam que qualquer
deputado, senador, presidente, ministro ia ser julgado pela mais alta corte de Justiça
e que dali não teriam para quem recorrer. E toparam. É um jogo político. E todo
mundo sabe as regras do jogo, ninguém ali é criança.
ConJur — E agora querem fazer o jogo de novo.
Guilherme Nucci — Agora que foram julgados, depois de 25 anos de Constituição,
alguém vem dizer assim: “Eu quero duplo grau. Qualquer réu aí de primeiro grau
tem direito a recorrer, por que eu não?” Muito simples: porque o coitado do
assaltante, que roubou ali na esquina, vai ser julgado por um juiz de primeiro
grau — que, para você, que tem foro privilegiado, não serve. Aí, ele vai
recorrer para o tribunal; e ele pode chegar ao Supremo, por grau de recurso.
Você, não. Você já começou na mais alta instância. Você escolheu esse sistema.
As regras estão postas há 25 anos. Reclamar disso agora é sofisma. Só isso.
ConJur — Outro argumento a favor da prerrogativa de foro é para evitar a
contaminação política da decisão. Uma crítica muito feita ao Ministério Público
é a perseguição a ocupantes de cargos políticos. Aquela mentalidade do “vamos
denunciar, é um ‘figurão’”.
Guilherme Nucci — Uma das argumentações realmente é essa: levando para a cúpula eu
evito que o julgamento seja contaminado, evito acusações levianas etc. Mas se
editássemos uma norma razoável, dizendo que as acusações devem ter tais
fundamentos, responsabilizando pessoalmente o autor de uma denúncia leviana, as
coisas engrenariam. Poderíamos fazer uma espécie de contrapeso. Tira o foro
privilegiado, mas põe uma responsabilidade maior em quem faz a denúncia e em
quem a recebe. A razoabilidade é o que deve imperar. O fato de a denúncia ter
de ser feita num órgão de cúpula é que existe, naturalmente, uma filtragem
maior. É uma realidade.
ConJur — Pune-se demais no Brasil, ou em São Paulo? O que se discute
agora, na reforma do Código Penal, por exemplo, é o aumento das penas dos
crimes de perigo abstrato, ou aumentar para o tráfico de drogas e aliviar para
o uso.
Guilherme Nucci — O levantamento que eu tenho, dos recursos que
me chegam, é que a gente só julga seis crimes: tráfico, homicídio, roubo,
furto, estelionato e estupro. E metade disso é tráfico. Aí te pergunto:
precisamos ter não sei quantos milhares de tipos penais? Não usam. Pune-se
demais? Pune-se, nada. Que perigo abstrato é esse que está sendo punido? Pega
todos os crimes de perigo abstrato do Código Penal e vê se estão sendo punidos.
Aliás, pega todos os crimes de perigo.
ConJur — E que crimes são esses?
Guilherme Nucci — Inundação, naufrágio, incêndio, omissão de socorro, abandono de
incapaz, maus tratos, bla bla bla. Bota na mesa, vê quantos estão sendo
punidos. Não existe, é mentira. Não tem excesso punitivo. Mas aí, o que eu
posso fazer se a sociedade vive com cocaína no bolso e arma na cintura? Pune-se
demais? Não. O que eu vejo é um excesso de leis inúteis, que podiam nem
existir.
ConJur — Tráfico, por exemplo, que o senhor mencionou, tem uma pena
muito pesada?
Guilherme Nucci — Olha, até acho que para o traficante de primeira viagem pode até
ser pesado cinco anos. Mas se você pensar no sujeito que pratica tráfico
pesado, se organiza, se arma, distribui, é preso com 30 quilos, corrompe, aí
tem que punir mesmo. E cinco anos é até pouco. Droga é pesado, corrompe o
sistema, fere a saúde pública.
ConJur — Mas existe a demanda.
Guilherme Nucci — Evidente. Concordo plenamente, isso é um problema social grave.
Não é só olhar o caráter criminal. Tem quem compre. A celeuma toda não vai ser
resolvida só na esfera penal. Mas nisso eu não tenho opinião formada. Não tenho
mesmo. Eu acho, sinceramente, que na esfera penal propriamente dita o tráfico
tem que ser punido. A única coisa que não concordo é o usuário que não cumpre a
pena alternativa não possa ser apenado. Ele foi pego duas vezes fumando maconha
e levou duas advertências. Na terceira acontece o quê? Outra advertência? Tinha
que ter uma postura mais dura do Estado para esses casos.
ConJur — Mas o que acontece é que o usuário é autuado como traficante.
Guilherme Nucci — Assim que saiu a lei eu escrevi isso no meu livro de tóxicos,
sobre as leis penais especiais. Disse o seguinte: “Sabe o que vai acontecer com
essa história de o usuário não ir mais para a cadeia? Os delegados vão começar
a autuar todo mundo por tráfico”. Dito e feito. E por que o delegado vai
amenizar? Pega o cara com cinco cigarros de maconha, ele que prove que é
usuário.
ConJur — A coisa se inverte, não é?
Guilherme Nucci — Exatamente. Porque quanto mais você ameniza um lado e carrega o
outro, a distorção fica muito grande. Um não vai para a cadeia de jeito nenhum
e o outro vai sempre, e o que acontece é que a polícia nunca vai te enquadrar
no lado de baixo, porque aí não faria sentido o trabalho dela.
ConJur — E no caso dos crimes de tráfico essa inversão tem acontecido
com frequência?
Guilherme Nucci — É patente. No TJ julgamos isso aos montes. A polícia autua, o MP
acusa e nós temos de desqualificar. No caso da lei do tráfico ficou esquisito
porque carregar a droga é tráfico, mas carregar a droga para uso, não. Então o
acusado é quem tem de provar o uso para desqualificar o tráfico.
ConJur — Então é a lei que inverte o ônus da prova?
Guilherme Nucci — Exatamente. O tráfico é que tinha que ter a finalidade: “Carregar
droga para comercializar”. E aí se não fica provada a intenção de vender, de
traficar, cai automaticamente para o uso. Mas hoje, pela lei, se você carrega a
droga, mas não consegue provar que é para consumo próprio, é condenado por
tráfico.
ConJur — E aí é aquela velha ideia de que a polícia prende e o
Judiciário solta.
Guilherme Nucci — Mas essa é velha mesmo. A Justiça não tem o papel
de prender. O papel dela é o de soltar também. Não é só um lado. Só que o papel
da polícia é o de prender. Ela trabalha para prender. O juiz, não.
ConJur — Mas também existe aquela noção de que o Judiciário brasileiro é
pró-réu. O ministro Joaquim Barbosa já falou isso algumas vezes.
Guilherme Nucci — São frases de efeito que mexem com a estrutura para que as pessoas
discutam. Vale para uma conversa numa mesa, mas eu não acredito na
generalização disso.
ConJur — O preso no regime fechado ganha o direito de progredir, mas não
há vagas no semiaberto. Ele deve esperar no fechado ou ir direto para o aberto?
Guilherme de Souza Nucci — A minha câmara tem duas posições. Uma é
dar um prazo para ele passar para o semiaberto. E a segunda posição é, se o
juiz der originalmente o semiaberto, aí ele não fica nem um dia a mais no
fechado. Porque tem isso também: a sentença é para ele ir para o semiaberto,
mas, como não tem vaga, ele vai para o fechado. Isso está completamente errado.
ConJur — E ele passa a ocupar uma vaga no fechado.
Guilherme Nucci — Essa é uma questão absurda. A pergunta que eu sempre faço aos meus
alunos: por que não falta vaga no fechado? Não amontoa? Por que não abre a
colônia e joga mais um? Por que no semiaberto tem número limitado de vagas e no
fechado não? São coisas engraçadas, não é? Então, amontoa todo mundo na
colônia. “Ah, mas aí vira bagunça.” O que significa então que o fechado vira
bagunça e o Executivo está sabendo que vira bagunça, e que está uma bagunça. Ou
vai me dizer que o fechado está totalmente organizado e nunca falta vaga? Então
porque o Estado não investe no semiaberto? Por que o estado de São Paulo,
especialmente São Paulo, não tem nenhuma casa de albergado? O regime aberto é
hoje uma impunidade por causa disso. Vai todo mundo pra casa.
ConJur — O que deve ser feito, então, com o condenado que progride, mas
não acha vaga?
Guilherme Nucci — Tem que ir para o aberto direto. Está no fechado, ganha o direito,
defiro. Não tem vaga, mas o que o preso tem com isso? O que é que o indivíduo
tem com a inépcia estatal? “Ah, ele que apodreça no fechado porque a sociedade
também não tem nada com isso.” Mas foi a sociedade que elegeu o governo. Então
alguém tem que ser responsabilizado por esse indivíduo ter ido para a rua antes
da hora. E se ele matar, estuprar, fizer acontecer, a culpa é do governante. A
culpa não é do desembargador que deferiu o Habeas Corpus para ele ir para o
regime aberto. É preciso que amanhã, quando esse indivíduo delinquir de novo
porque ele não estava preparado para ir para o aberto, que todo mundo se reúna
e fale: “Culpa de quem? Do Executivo”.
ConJur — Mas tem o juiz que manda ele continuar preso.
Guilherme Nucci — Tem que parar com essa história de “eu sou desembargador
justiceiro, eu tenho que fazer justiça de qualquer jeito e mandar esse cara
continuar no regime fechado. A sociedade não pode pagar essa conta, e se não
tem vaga no semiaberto, fica no fechado”. Fazendo isso, estou resolvendo um
problema do Executivo. Eu sou juiz, não tenho que resolver isso, tenho é que
aplicar a lei. E a lei fala que ele tem de ir para o semiaberto, então ele tem
de ir para fora da cadeia. Ele tem direito de estar numa colônia penal. Se não
tem vaga, vai para um regime melhor, não pior. É meio que óbvio. Uma
argumentação: se eu vou para um hotel e pago o quarto de luxo, mas não tem
vaga, o hotel vai me mandar para a suíte presidencial, o regime aberto, ou para
o standard, o regime fechado?
ConJur — No caso da saúde pública, também se discute se cabe ao
Judiciário decidir pelo Executivo.
Guilherme Nucci — Até hoje. “Eu preciso trabalhar, preciso botar meu filho na
creche. O Estado prometeu. Tá aqui do lado a creche, do meu lado. Não tem
vaga”. Entra na fila. Fila de creche, fila de hospital. Aí o que acontece? Eu
me lembro que era juiz da Fazenda Pública na época do problema das creches. Era
liminar em cima de liminar para botar criança na creche. O que é que o
Executivo reclamou? Que o Judiciário está se metendo nos negócios do governo.
Com a saúde foi a mesma coisa. O sujeito chegava lá dizendo: “Estou morrendo,
preciso de tratamento”. Eu dava a liminar: “Estado, paga o remédio para esse
sujeito”. Aí vinha mais uma discussão: “A jurisdicionalização da saúde pública.
Os juízes querem comandar a saúde pública do estado”. Onde o juiz bota a mão
firme para o Executivo trabalhar, irrita.
ConJur — É o mesmo problema com saúde, creche e presos...
Guilherme Nucci — O mesmo problema. Agora, se vamos chegar naquele ponto “mas o
Estado não pode fazer tudo”, então vamos parar e discutir tudo de novo, porque
alguma coisa está errada. Eu prometo tudo e não entrego nada, e ainda tem
alguns que dizem que está certo em não dar. Mas é simples: vamos mudar as
regras, as leis, a Constituição e dizer que não temos mais direitos. O que eu
não me conformo é botar o filho de um na creche e o do outro, não. Isso é
horroroso. Na minha área, o que eu posso fazer para as pessoas terem direitos
iguais, eu faço.
ConJur — O ministro Joaquim Barbosa recentemente falou na ideia de que o
prazo prescricional só deveria contar para a investigação. Segundo ele, depois
que o inquérito chega ao Judiciário e vira ação penal, acabaria o prazo e nunca
prescreveria. É viável?
Guilherme Nucci — Não. O réu não tem que arcar com o peso da máquina do Judiciário.
A prescrição existe porque o Estado é ineficiente. Se o Judiciário leva 20 anos
para julgar, o que o réu tem com isso? O problema da máquina é a efetividade,
um processo não pode se arrastar por milênios. A prescrição atrapalha? Vamos
reformar o Regimento Interno do STF, que está muito desatualizado, vamos
reformar algumas leis penais e processuais, para readaptar, porque o Código
Penal é de 1941. Mas tenha certeza: mudar lei não muda mentalidade.
ConJur — Tem de ver os efeitos da lei na prática, não é?
Guilherme Nucci — A lei não muda a prática. Não é “muda a lei, muda o mundo”. A lei
ajuda, mas especialmente quando ela muda em face da realidade, não quando ela
muda em um mundo fictício. Se eu implantar um código suíço no Brasil, o Brasil
não vai virar a Suíça. Mas é evidente que se você pega um caso de quase 40 réus
e joga para o Supremo julgar, nem um juiz de primeiro grau daria conta de
julgar isso rápido, quem dirá um colegiado.
ConJur — No caso do mensalão foram meses de debates, fora os anos de
instrução.
Guilherme Nucci — Isso não é por acaso. Todo mundo sabe que demora e todo mundo quer
o foro privilegiado. As coisas não vão se resolver tão cedo enquanto o Brasil
não “elasticizar” um pouco mais essas prerrogativas. A gente precisa ser mais
americanizado nesse ponto. Lá, sim, há democracia plena nesse aspecto. Lá o
presidente da República sentou no banco dos réus. O Bill Clinton teve de se
sujeitar a uma pronúncia, naquele caso da Monica Lewinski. Teve de se
justificar perante o júri sob o risco de ser condenado por perjúrio. Quando
isso vai acontecer no Brasil? Isso é democracia, o resto é conversa.
ConJur — Mas há abuso com o uso de recursos deliberadamente
protelatórios?
Guilherme Nucci — Vamos diferenciar. Recurso protelatório é uma coisa, ação
protelatória é outra. É natural que os advogados, em geral, quando percebam
algum flanco de petição, vão por esse caminho. Se eu fosse advogado, faria a
mesma coisa. Estou trabalhando pelo meu cliente. O advogado que não faz isso é
cobrado depois. Nem gosto de falar que o recurso é protelatório, porque ele
está previsto em lei. E se está em lei, não pode ser chamado de protelatório. É
direito. Ou reforma a lei e tira o recurso. Mas se eu, de fora, como juiz,
enxergo o recurso como uma coisa sem efeito, apenas com a intenção de atrasar a
conclusão do caso, eu tiro o recurso, não conheço dele. Simples. Não preciso
fazer alarde, dar bronca no advogado. Enquanto existe o recurso previsto em
lei, não posso acusar o advogado e falar “olha, está protelando!”
ConJur — A ministra Eliana Calmon, quando ocupou a Corregedoria do
CNJ, costumava falar nos bandidos de toga, que a corrupção tomou conta do
Judiciário.São estes os problemas do judiciário?
Guilherme Nucci — Criou-se uma frase que a imprensa gostou e captou. Mas eu não
tenho muito receio de frases de efeito, não. Elas têm o seu valor. Quando você
faz uma afirmação muito dura e ela repercute dá uma balançada no jogo, dá uma
mexida na areia do fundo do lago. Não é ruim, de todo. Se você fala, por
exemplo, que “juízes sentenciam mal”, todos vão falar: “Mas que absurdo!” Mas
vai acordar muita gente. “Por que foi falado isso? Será que existe esse
problema? Será que sentencio mal? Será que sou venal?”. Do nada, essas frases
não vêm. Mas é mais uma questão de autocrítica, porque elas não têm nenhum
efeito prático.
ConJur — O mensalão também trouxe à tona o tema da prescrição da
pretensão punitiva. Qual o problema? É a lei processual penal que permite o
alongamento indefinido do processo?
Guilherme Nucci — Não creio que a culpa seja da lei. O ponto fundamental aí é
máquina emperrada. A gente tinha que ter mais juízes, mais funcionários, não
tem outra alternativa.
ConJur — Isso não pulverizaria a jurisprudência?
Guilherme Nucci — Mas aí é o de menos. O importante é andar. E aqui
em São Paulo também tem a questão correcional: a máquina está emperrada e o
juiz é obrigado a trabalhar contra a máquina, mas também tem o juiz que não
trabalha. Então a atividade do CNJ, da Corregedoria-Geral é importante.
ConJur — O que acha da atuação do CNJ?
Guilherme Nucci — Não acompanho diretamente, não sei internamente
como as coisas funcionam, mas pelo que leio, o impacto tem sido positivo. Juiz
que trabalha não é perturbado pelo CNJ. O mau juiz, de fato, deve responder,
deve ser perturbado. Mas é claro que a gente tem de ponderar. Fui assessor da
Corregedoria aqui em São Paulo em 2000 e 2001. A gente fiscalizava bem,
perguntava por que não estava trabalhando. E o juiz respondia: “Porque estou sem
funcionário”. E aí o que se pode fazer? Nada. Precisamos ponderar para que não
haja injustiça.
ConJur — A questão é estrutural.
Guilherme Nucci — Temos que aparelhar melhor o judiciário, e aí cobrar o juiz. Dou
os funcionários, melhoro a estrutura da vara, mas agora quero as coisas
funcionando. Se você não pode dar a estrutura, não pode cobrar. E aí a máquina
emperra.
conjur