Neste
abre ou não abre os arquivos do governo militar, as entrevistas dos
governantes atuais advertindo que os perseguidos, isto é, as vítimas,
serão mais comprometidas do que os perseguidores, esquerdistas
dedos-duros, a decisão de um tribunal convocando reunião de ministros e
comandantes militares para indicarem onde estão os corpos de
guerrilheiros assassinados pelo batalhão Heróis do Jenipapo, pessoas
pedindo transparência, militares achando que começou o revanchismo, a
Lei da Anistia foi para os dois lados, gente pedindo paz, deixa disso,
já passou, somos irmãos -em toda essa fervura ninguém toca, ninguém
fala, ninguém diz nem uma palavra sobre o que de mais terrível tivemos
naqueles anos de chumbo, segundo a definição de um historiador: o
Ministério Público.
Quietinho, hoje mais ou menos herói nacional, sem jenipapo, com reais serviços prestados à sociedade e à lei, o Ministério Público não deve desejar que remexam no passado, porque, mais que os militares, seus membros, em grande parte, foram na época inquisidores fanáticos, arbitrários, subservientes, submissos à ditadura, terríveis.
Os militares abriam o IPM (Inquérito Policial Militar) e faziam barbaridades sustentadas pelo respaldo jurídico do respectivo Ministério Público. Depois, as peças do IPM eram remetidas à Justiça Comum (quando acabaram as auditorias de guerra) e caíam na mão do Ministério Público estadual, devidamente orientado e instruído pelo militar da área. Denúncias por ter assistido a filme da Checoslováquia, por ter lido um livro de conotações esquerdistas, por ser amigo de um primo de um sujeito que era parente de um comunista.
Criaram a doutrina do medo, que até hoje existe de certa forma: ameaçavam os juízes com cassação sem aposentadoria. Atualmente não existe mais a cassação, mas os juízes, por tradição, conservaram o medo. Sobretudo os federais. Sempre ressalvadas as honrosas exceções.
No caso do assassinato de Vladimir Herzog, nas masmorras do Doi-Codi, o Ministério Público sustentou a tese do suicídio com o maior cinismo. E fez mais: quando foi datilografada a sentença na ação proposta pela viúva, sra. Clarice Herzog, o Ministério Publico requereu mandado de segurança contra o juiz para impedi-lo de ler a sentença no dia marcado. No Tribunal Federal de Recursos, um ministro deu a liminar e me contou, depois, "ou a liminar ou a cassação". A liminar foi mantida até a aposentadoria do juiz, um mês depois. O procurador da República envolvido ficou uma fera, porque o juiz substituto prolatou a sentença em favor de dona Clarice. Não teve medo nenhum.
No caso da Panair, o Ministério Público executou a intervenção decretada pelos militares e acabou com a companhia. Praticou todas as ilegalidades possíveis. Quando era muito acintoso o ato contrário à lei vigente, providenciava para que fosse feita outra e os militares baixavam decreto-lei atendendo ao pedido do fiscal da ordem jurídica.
Quando a Panair, em processo de falência, demonstrou que seus ativos eram maiores que o passivo, requereu concordata suspensiva para evitar a dilapidação de seu patrimônio entregue ao Ministério Público. A pedido da nobre instituição, o governo baixou o decreto-lei nº 669, de 3 de julho de 1969, dispondo que "não podem impetrar concordata as empresas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou infra-estrutura aeronáutica". Na medida exata.
Felizmente a nova geração do Ministério Público, tanto do federal, como dos estaduais, melhorou muito, aprendeu um pouco de democracia, acabou entendendo o que é Estado de Direito, tem se conduzido com austeridade no combate ao crime. Mas ainda cai em tentação política quando abusa de suas competências em ações civis públicas, e alguns -- poucos, é verdade -- servem a interesses que nada têm que ver com a defesa da lei. O arquivamento dos casos de abusos de policiais militares, noticiado pela Folha, faz, de certa forma, lembrar os velhos tempos. Pode ser que sim, pode ser que não.
Mas, se abrirem os arquivos da ditadura, a surpresa maior, para os historiadores e famílias das vítimas, será a atuação dos procuradores da República e dos promotores públicos.
Os militares, sobretudo os antigos e velhos, são aquilo que nós conhecemos. Gostavam de golpe legal, chamavam juristas para fundamentar seus atos de arbítrio, acreditavam piamente estar defendendo a pátria contra os comunistas e subversivos, que era ético matar a liberdade em nome da segurança contra a ameaça soviética, tinham a cabeça feita pelos Estados Unidos e queriam que tudo fosse praticado dentro da lei, inclusive a tortura e as mortes, embora não tivéssemos lei que as autorizasse.
O Ministério Público interpretava a lei de acordo com esse desejo, para que a consciência da ditadura dormisse em paz. Se abrirem os arquivos, todos vão ter surpresas, menos nós, os velhos advogados.
Quietinho, hoje mais ou menos herói nacional, sem jenipapo, com reais serviços prestados à sociedade e à lei, o Ministério Público não deve desejar que remexam no passado, porque, mais que os militares, seus membros, em grande parte, foram na época inquisidores fanáticos, arbitrários, subservientes, submissos à ditadura, terríveis.
Os militares abriam o IPM (Inquérito Policial Militar) e faziam barbaridades sustentadas pelo respaldo jurídico do respectivo Ministério Público. Depois, as peças do IPM eram remetidas à Justiça Comum (quando acabaram as auditorias de guerra) e caíam na mão do Ministério Público estadual, devidamente orientado e instruído pelo militar da área. Denúncias por ter assistido a filme da Checoslováquia, por ter lido um livro de conotações esquerdistas, por ser amigo de um primo de um sujeito que era parente de um comunista.
Criaram a doutrina do medo, que até hoje existe de certa forma: ameaçavam os juízes com cassação sem aposentadoria. Atualmente não existe mais a cassação, mas os juízes, por tradição, conservaram o medo. Sobretudo os federais. Sempre ressalvadas as honrosas exceções.
No caso do assassinato de Vladimir Herzog, nas masmorras do Doi-Codi, o Ministério Público sustentou a tese do suicídio com o maior cinismo. E fez mais: quando foi datilografada a sentença na ação proposta pela viúva, sra. Clarice Herzog, o Ministério Publico requereu mandado de segurança contra o juiz para impedi-lo de ler a sentença no dia marcado. No Tribunal Federal de Recursos, um ministro deu a liminar e me contou, depois, "ou a liminar ou a cassação". A liminar foi mantida até a aposentadoria do juiz, um mês depois. O procurador da República envolvido ficou uma fera, porque o juiz substituto prolatou a sentença em favor de dona Clarice. Não teve medo nenhum.
No caso da Panair, o Ministério Público executou a intervenção decretada pelos militares e acabou com a companhia. Praticou todas as ilegalidades possíveis. Quando era muito acintoso o ato contrário à lei vigente, providenciava para que fosse feita outra e os militares baixavam decreto-lei atendendo ao pedido do fiscal da ordem jurídica.
Quando a Panair, em processo de falência, demonstrou que seus ativos eram maiores que o passivo, requereu concordata suspensiva para evitar a dilapidação de seu patrimônio entregue ao Ministério Público. A pedido da nobre instituição, o governo baixou o decreto-lei nº 669, de 3 de julho de 1969, dispondo que "não podem impetrar concordata as empresas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou infra-estrutura aeronáutica". Na medida exata.
Felizmente a nova geração do Ministério Público, tanto do federal, como dos estaduais, melhorou muito, aprendeu um pouco de democracia, acabou entendendo o que é Estado de Direito, tem se conduzido com austeridade no combate ao crime. Mas ainda cai em tentação política quando abusa de suas competências em ações civis públicas, e alguns -- poucos, é verdade -- servem a interesses que nada têm que ver com a defesa da lei. O arquivamento dos casos de abusos de policiais militares, noticiado pela Folha, faz, de certa forma, lembrar os velhos tempos. Pode ser que sim, pode ser que não.
Mas, se abrirem os arquivos da ditadura, a surpresa maior, para os historiadores e famílias das vítimas, será a atuação dos procuradores da República e dos promotores públicos.
Os militares, sobretudo os antigos e velhos, são aquilo que nós conhecemos. Gostavam de golpe legal, chamavam juristas para fundamentar seus atos de arbítrio, acreditavam piamente estar defendendo a pátria contra os comunistas e subversivos, que era ético matar a liberdade em nome da segurança contra a ameaça soviética, tinham a cabeça feita pelos Estados Unidos e queriam que tudo fosse praticado dentro da lei, inclusive a tortura e as mortes, embora não tivéssemos lei que as autorizasse.
O Ministério Público interpretava a lei de acordo com esse desejo, para que a consciência da ditadura dormisse em paz. Se abrirem os arquivos, todos vão ter surpresas, menos nós, os velhos advogados.
José Saulo Pereira Ramos é advogado e foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney)
Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2005
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