O New York Times publicou e toda a imprensa repercutiu. O diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, foi preso neste domingo após ser acusado de ato obsceno, cárcere privado e tentativa de estupro contra uma camareira de hotel. DSK, que é o candidato socialista à sucessão de Nicolas Sarkozy, teria saido nu do banheiro do apartamento enquanto a moça, de 32 anos, arrumava seus aposentos. Ele tentou fazer com ela o que o FMI sempre fez com os países do 3º Mundo.
O crime teria ocorrido num Sofitel, em Manhattan, Nova Iorque. Ao escapar do ataque, a vítima chamou a Polícia. Com isso, o chefão do FMI caiu nas mãos da SVU (Special Victims Unity), unidade especializada em investigação de crimes sexuais, que, na TV, aparece no seriado Law and Order SVU.
Strauss-Kahn será apresentado a um juiz e deverá declarar-se inocente, na audiência dearraignment, aquela em que o acusado diz ser guilty ou not guilty. Negar tudo é a melhor estratégia. Afinal, se não surgirem provas materiais, como DNA, será a palavra de DSK, o big bossdo FMI, contra a de uma camareira. Veja aqui a denúncia (“criminal complaint“) promovida pela Promotoria de Manhattan contra DSK.
O que me interessa não é a fofoca, mas algumas questões processuais. As seis primeiras, que listo abaixo, mostram quão diferentes são os sistemas criminais do Brasil e dos Estados Unidos.
1. O suspeito foi submetido a um exame de DNA. A Polícia de Nova Iorque teria obtido um mandado para a coleta de material genético de DSK. Diferentemente do que se passa no Brasil, lá nos EUA não se sustenta a tese de que o acusado tem o direito de recusar-se a passar por perícia de genética forense. Um juiz pode autorizar sua realização, e isto não é considerado uma ofensa à garantia contra a autoincriminação.
2. O investigado também foi submetido a reconhecimento pela vítima. Policiais americanos reuniram o suspeito a outros indivíduos parecidos com ele, no que lá chamam de “lineup“, e a vítima o identificou. Entre nós, há quem sustente que o investigado não é obrigado a tomar parte do reconhecimento, ainda que isto se realize de forma passiva.
3. Ao ser conduzido à corte distrital de Manhattan, no dia de sua prisão, o suspeito estava algemado. É o tradicional “perp walk” ou “perpetrator walk“, a caminhada do suspeito. No Brasil, não seria possível fazê-lo, tendo em vista a Súmula Vinculante 11, do STF, que restringe o uso de algemas a situações excepcionais.
4. O suspeito foi preso por decisão da Polícia e do Ministério Público de Nova Iorque, de forma cautelar. Tal prisão é precária e só resiste se confirmada por um juiz após a audiência de “arraignment”. No Brasil, não há este tipo de restrição à liberdade. Mesmo a prisão temporária depende de autorização judicial.
5. Na audiência de “arraignment“, o suspeito pode ser mantido preso (“remand“) ou ser solto mediante o pagamento de fiança (“bail“). No Brasil, qualquer que seja o crime, o investigado pode ser solto sem pagar um tostão. A fiança é uma miragem. Veremos se a Lei 12.403/2011 mudará isto.
6. No caso concreto, a juíza sorteada para o caso negou a fiança de US$ 1 milhão oferecida pela defesa e manteve a prisão de DSK, por considerá-lo um fugitivo em potencial. Aqui no Brasil, certos banqueiros são considerados pessoas acima de qualquer suspeita e são postos imediatamente em liberdade. Alguns fogem rapidinho para a Itália.
Vistas estas distinções jurídico-culturais, centremos nossa atenção no mais importante dos temas processuais que o caso envolve. Como representante de uma organização internacional, o FMI, Strauss-Kahn tem imunidade de jurisdição?
Se fosse diplomata, a resposta seria simples e direta: sim. Pela Convenção de Viena de 1961(art. 31), os agentes diplomáticos são imunes à jurisdição local, de forma absoluta, isto é, para todos os crimes. Só podem ser processados pela Justiça territorial se o Estado ou a OI renunciarem expressamente à imunidade.
Para os cônsules, protegidos pela Convenção de Viena de 1963 (art. 43), a imunidade é relativa, e só diz respeito aos atos de ofícios. Ou seja, só não podem ser processados pela Justiça do país onde trabalham se o crime for relacionado à função consular (oficial).
Porém, Strauss-Kahn não é uma coisa nem outra. Qual o seu status? O IMF’s Articles of Agreement, adotado na famosa Conferência de Bretton Woods em 1942, determina que os agentes da organização são imunes “with respect to acts performed by them in their official capacity except when the Fund waives this” (artigo 9º, §8º). Em bom português, a imunidade só se aplica para os atos de ofício, que não incluem peripécias em quartos de hotel, nem atos de “hospício”, como o que ele teria praticado.
Ocorre que o FMI é uma agência especializada da ONU. O art. 15 do Acordo de Sede da Organização das Nações Unidas (ONU) com os Estados Unidos estabelece que os principais dirigentes das agências especializadas da ONU dispõem, no território americano, de privilégios e imunidades semelhantes às dos agentes diplomáticos. Para isto, é necessário uma avença específica entre as partes envolvidas, no caso a França, os EUA e o FMI.
Portanto, creio que o diretor do FMI poderá ser julgado normalmente nos EUA, sem possibilidade de invocar a imunidade processual diante da Justiça nova-iorquina. Se puder fazê-lo, o FMI ainda assim terá a faculdade de renunciar à imunidade, o que colocaria Strauss-Kahn no banco dos réus em Manhattan. Caso o FMI não o faça, caberá à França, seu país de origem, tocar a ação penal.
Com ou sem imunidade, o diretor do FMI responderá por atos tão obscenos quanto os jurosque o órgão costuma cobrar dos países pobres.
Por: Vladimir Aras
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