domingo, 15 de maio de 2011

Entrada proibida

por Vladimir Aras
Se alguém entrar em sua casa sorrateiramente, à noite, sem sua autorização, para “fazer uma limpa” ou subtrair um de seus bens, você diria que isto é um ato insignificante?
Para uma defensora pública em Minas Gerais, é.Claro, não era a casa dela.
No HC 108.282/MG, o STF decidirá se “Xis de Tal”, o ladrão intruso, deve ser absolvido pela Justiça, mesmo após ter invadido a casa da vítima e ter tentado furtar um aparelho receptor de antena parabólica, avaliado em R$100,00. Invoca-se o princípio da insignificância. O furto teria sido um nadica de nada. O relator é o ministro Joaquim Barbosa.
Obviamente, este valor é irrisório. Cem reais é menos do que 1/5 do salário mínimo, e o abalo patrimonial à vítima seria pequeno. Porém, há outros “valores” em jogo, a começar pelos direitos à segurança, à intimidade da vida doméstica e o direito à inviolabilidade do domicílio, valores importantíssimos em qualquer sociedade democrática.
Diz a Constituição que ninguém pode entrar na casa de outrem clandestinamente ou à força, salvo em flagrante delito, ou para prestar socorro ou ainda por ordem judicial. Ninguém! Nem o ladrão impetrante.
Se esta invasão tivesse ocorrido na Rua dos Bobos, número zero, seu morador ofereceria uma xícara de chá com biscoitos para o visitante noturno. O ”pesquisador” nem marcou hora, mas os donos daquela casa são educados nas melhores escolas e não fariam uma desfeita destas com um conviva tão bem-vindo, ainda mais por uma coisa tão desimportante. Diriam: – “Que é isto?! Processar alguém por entrar em sua casa para cometer um furto? Que arbitrariedade sem tamanho!”. É o que chamo de cafuné processual. Sempre é possível arranjar uma tese qualquer para “passar a mão pela cabeça” do acusado culpado. “Tadinho” do réu invasor.
As garantias fundamentais do art. 5º da Constituição e do art. 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos não servem apenas para os réus. Também protegem as vítimas e a sociedade como um todo. Este é o verdadeiro garantismo, que não puxa a balança dos juízes só para um lado, com seus pesos e contrapesos marotos. Está lá na CF/1988:
“XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Por si só, o comportamento de “Xis” caracteriza o crime de violação de domicílio, previsto no art. 150, §1º, do CP, com pena de 6 meses a 2 anos de detenção. E o suspeito nem precisa levar nada para que esta conduta seja considerada crime! Basta entrar ilegalmente na casa de outrem.
Já para o crime de furto qualificado pelo concurso de agentes (art. 155, §4º, inciso IV,  do CP), a pena é de 2 a 8 anos de reclusão. Lá em Minas, ”Xis” foi condenado a 1 ano e 8 meses por tentativa de furto, com a agravante do art. 61, inciso I, do CP (reincidência), em regime semiaberto. O juiz e o tribunal mineiros poderiam ter aplicado ao réu o §2º do mesmo artigo, que diz:
§ 2º – Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
A Justiça mineira só não usou esta causa especial de diminuição de pena porque “Xis de Tal” éreincidente em crime doloso. Só o réu primário tem direito a pena diminuída. Como se percebe, a própria legislação já prevê a redução de pena para os furtos de pequeno valor, o que está certo!
Agora não venha o paciente do HC 108.282/MG com esta conversa de que sua conduta éinsignificante e que isto deve levar à sua absolvição. Faça-me o favor! O bem material que seria subtraído da vítima era insignificante, mas a conduta do acusado não foi. Se não houve o furto, fica o crime de invasão, e o caso não seria de absolvição, mas de desclassificação! Ou é insignificante violar o “asilo inviolável” do indivíduo? Por mais humilde que seja - uma choupana, um barraco ou uma mansão -, a casa é o lugar onde todos somos majestades. Não dá em nada devassar este espaço de abrigo, segurança e proteção?
Uma vez, lá na Chapada Diamantina, nos idos anos 1990, atuava como promotor auxiliar da comarca de Seabra ajudando o grande colega Almiro Sena Soares Filho, hoje secretário de Justiça da Bahia. Houve um homicídio. O inquérito foi concluído pela Polícia Civil e ficou provado que ”Tício” matara ”Lívio” a tiros. Porém, não denunciei o suspeito. A legítima defesa era claríssima. ”Lívio” invadira a casa de ”Tício” à noite, para furtá-la. Forçava a janela para entrar na casa. Lá dentro estavam as verdadeiras vítimas: um homem, sua mulher e uma filha pequena. Lamentavelmente, a “conduta insignificante” do ladrão invasor custou-lhe a vida.
Eis aqui um caso muito semelhante que ocorreu em fev/2011 em Curitiba. E este outro aqui em Manaus, em abr/2001.
Então, o que parece é que, se dois indivíduos (eram dois!), “Xis” e “Ypsilon”, deram-se ao trabalho de se juntar em Minas Gerais e entrar na casa da vítima à noite, às 22 horas, e só tentaram surrupiar o receptor de TV via satélite é porque não acharam mais nada à mão para levar. E só não levaram porque foram surpreendidos pela vítima, que os encontrou em sua sala às 10 da noite.
O caso de Minas Gerais que agora vai ao STF foi decidido pela 6ª Turma do STJ em março/2011. OHC 196.201/MG foi denegado por unanimidade. A tese da insignificância foi rejeitada. Veja a ementa:
HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE FURTO QUALIFICADO.PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.
1. Embora atualmente, em razão do alto índice de criminalidade e da consequente intranquilidade social, o Direito Penal brasileiro venha apresentando características mais intervencionistas, persiste o seu caráter fragmentário e subsidiário, dependendo a sua atuação da existência de ofensa a bem jurídico relevante, não defendido de forma eficaz por outros ramos do direito, de maneira que se mostre necessária a imposição de sanção penal.
2. Em determinadas hipóteses, aplicável o princípio da insignificância, que deve ter em conta a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
3. A despeito do pequeno valor da res furtiva (aparelho receptor de antena parabólica avaliado em R$ 100,00), não é de se falar em mínima ofensividade da conduta, revelando o comportamento do paciente razoável periculosidade social e significativo grau de reprovabilidade,notadamente por fato de que o delito foi praticado com invasão ao domicílio da vítima e em concurso de agentes, inaplicável, destarte, o princípio da insignificância.
4. Habeas corpus denegado. 
Há um precedente no STF. Para este tribunal, só se se aplica o princípio da insignificância se a conduta do agente for minimamente ofensiva; se não houver periculosidade social na ação; se for reduzidíssimo o grau de reprovabilidade do comportamento do agente; e se for inexpressiva a lesão jurídica causada à vítima (HC 84.412/SP, rel. min. Celso de Mello). Está de bom tamanho.
Mas entrar ilegalmente no domicílio de alguém não pode ser um nada jurídico. Então, palmas para o TJ/MG e para o STJ que não deixaram essa tese moderninha e pseudogarantista“invadir” a Casa da Justiça! Esta também deve ser inviolável, tanto quanto o é o domicílio da vítima. A morada de um cidadão não é a Casa da Mãe Joana, aquela que tem uma porta por onde qualquer um pode entrar.

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