Brasília, 20 de junho de 2011.
Caros,
Segue parecer da lavra do e. jurista Ives Gandra da Silva Martins, acerca das funções institucionais das
polícias, solicitado pelo Dr. Melão, Presidente do SINDICATO DOS DELEGADOS
DE POLÍCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO – SINDPESP.
Atenciosamente,
Diretoria integradas do SINDEPO e da ADEPOL.
FUNÇÕES CONSTITUCIONAIS DAS POLÍCIAS MILITARES E CIVIS – COMPETÊNCIAS DE ATRIBUIÇÕES E LEGISLATIVA DISCRIMINADAS PELA LEI SUPREMA – INCONSTITUCIONALIDADE DA INVASÃO DAS COMPETÊNCIAS PRÓPRIAS DA POLÍCIA CIVIL DETERMINADA POR RESOLUÇÃO DE SECRETARIA ESTADUAL – OPINIÃO LEGAL.
CONSULTA
Formula-me, o presidente do SINDICATO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO – SINDPESP, Dr. George Henrique Melão Monteiro, a seguinte consulta:
“O SINDICATO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO – SINDPESP, em razão de RESOLUÇÃO edita pelo senhor Secretário dos Negócios da Segurança Pública do Estado de São Paulo, a qual possui conteúdo que afeta atribuições da Polícia Civil e da Polícia Militar, e, aparenta ter sido editada sem observação aos preceitos constitucionais e legais;
Diante de tais dúvidas, vimos pelo presente, solicitar de Vossa Senhoria consulta com parecer sobre os aspectos constitucionais da RESOLUÇÃO 35 SSP/SP de 23 de março de 2011, a qual segue abaixo:
GABINETE DO SECRETÁRIO
Resolução da SSP nº 35, de 23-3-2011
Estabelece rotina para o registro do Boletim de Ocorrência pela Polícia Militar no Estado de São Paulo.
O Secretário da Segurança Pública:
Considerando o objetivo permanente do Governo do Estado, por intermédio das Instituições Policiais, de buscar continuamente a excelência na prestação de serviços de segurança pública à população;
Considerando a preocupação constante em propiciar maior celeridade no atendimento à população quando do registro de ocorrências policiais, facilitando o acesso à população carente;
Considerando a preocupação em reduzir a sub-notificação de ocorrências e a necessidade da Polícia do Estado em conhecer com profundidade a criminalidade atuante e, com isso, planejar com eficiência o emprego de seus meios;
Considerando a presença diuturna e ostensiva da Polícia Militar em todos os municípios do Estado, bem como o grande número de instalações policial-militares distribuídas estrategicamente com o intuito de aumentar a percepção de segurança da Sociedade Paulista;
Considerando que algumas regiões do Estado, por se localizarem em pontos periféricos e carentes de recursos, apresentam dificuldades em relação ao acesso a serviços públicos da rede informatizada;
Considerando que o § 3º do art. 5º do Código de Processo Penal estabelece que qualquer do povo poderá, por escrito ou verbalmente, comunicar à autoridade policial a ocorrência de infração penal de ação pública, cabendo a essa autoridade, uma vez confirmados os fatos, instaurar o competente inquérito policial;
Considerando que no período de 15 de fevereiro a 22 de março de 2011 foi realizado teste na área do 62º Distrito Policial da 7ª Delegacia Seccional de Polícia coincidente com a 4ª Companhia do 2º Batalhão de Polícia Militar do Comando de Policiamento de Área Metropolitana – 4, Zona Leste da Capital, com pleno êxito, resolve:
Artigo 1º - As ocorrências policiais de furto de veículos, desaparecimento de pessoas, furto e perda de documentos, furto e perda de celulares, furto e perda de placas de veículos e encontro de pessoas desaparecidas, poderão ser registradas em boletim diretamente por policiais militares.
Parágrafo único – A critério do Comandante Geral da Polícia Militar e do Delegado Geral da Polícia Civil, em decisão conjunta e a bem do interesse público, o rol de ocorrências poderá ser ampliado ou reduzido.
Artigo 2º - O Boletim de Ocorrência será lavrado com a presença do solicitante, e após ser conferido e assinado, será entregue uma cópia ao interessado.
Artigo 3º - As informações constantes no Boletim de Ocorrência serão digitadas e/ou transmitidas eletronicamente para os sistemas informatizados das Polícias Militar e Civil para, respectivamente, serem utilizadas no planejamento operacional e darem prosseguimento às ações de polícia judiciária, sendo disponibilizadas no Sistema de Informações Criminais – INFOCRIM.
Artigo 4º - As Polícias Militar e Civil, no seu âmbito e havendo necessidade, baixarão normas complementares a fim de disciplinar a fiel execução do contido na presente resolução.
Artigo 5º - Fica estabelecido o prazo de 180 dias para implantação da nova sistemática em todo o Estado.
Artigo 6º - Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação.
Entende a entidade consulente ser inconstitucional o referido ato administrativo pelos motivos que passa a expor:
A Constituição Federal determina a subordinação da polícia estadual ao Governador do Estado e não ao Secretário de Segurança Pública, senão vejamos:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(omissis...)
§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército,subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (grifo nosso)
No mesmo sentido, preceitua a Constituição do Estado de São Paulo:
Artigo 139 - A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio.
§ 1º - O Estado manterá a Segurança Pública por meio de sua polícia, subordinada ao Governador do Estado. (grifo nosso)
Ressalte-se ainda que a Constituição do Estado de São Paulo, no que se refere aos atos administrativos normativos dirigidos à Polícia Civil e à Polícia Militar dos Estados, que somente podem ser emanados por seus Governadores, e na forma de Decretos, os quais podem sofrer controle de constitucionalidade preventivo e repressivo. Não podendo, assim, um agente político cuja função é de auxílio ao governo, editar a resolução que ora se ataca, mesmo porque, conforme se depreende do caput do artigo 47 da CE, a competência é privativa do Governador, ou seja, a função normativa, neste caso, é indelegável:
Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição: (grifo nosso)
Ademais, o conteúdo da Resolução SSP 35 de 23 de março de 2.011 contraria os parágrafos 4º e 5º do artigo 144 da Constituição Federal.
Art. 144 (...) CF
§ 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. (grifo nosso)
§ 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. (grifo nosso)
A “RESOLUÇÃO” do Secretário de Segurança Pública, contrariando o ordenamento jurídico constitucional, fere os princípios da LEGALIDADE e da EFICIÊNCIA contidos no artigo 37 da Constituição Federal e reproduzido no artigo 111 da Constituição do Estado de São Paulo com efeitos ampliados:
CF - Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (grifo nosso)
CE - Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência. (grifo nosso)
Esclareço ainda que, no tocante ao princípio da eficiência, o próprio Governo reconhece na RESOLUÇÃO ao querer transferir atribuições da Polícia Civil para a Polícia Militar, ao passo que, seria mais EFICIENTE e porque não, muito menos oneroso, investir no órgão que possui a competência constitucional e legal para exercer a função de Polícia Judiciária.
Ressalte-se ainda que, na parte final da redação do artigo 141 da CE, resta claro que somente a LEI, em sentido estrito, pode atribuir encargo ou competência para a Polícia Militar:
Constituição do Estado de São Paulo
Artigo 141 - À Polícia Militar, órgão permanente, incumbem, além das atribuições definidas em lei, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. (grifo nosso)
Na mesma esteira da inconstitucionalidade, conforme já fartamente demonstrado, a RESOLUÇÃO menciona expressamente o parágrafo 3º do artigo 5º do Código de Processo Penal, fato que, por si só, indica ser o Boletim de Ocorrência peça vinculada a procedimentos de Polícia Judiciária, ou seja, é matéria processual penal, que, nos termos do artigo 22, I da Constituição Federal, compete à UNIÃO, privativamente, legislar sobre o tema:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;” (grifo nosso)
Pergunta, pois, se sua exegese dos textos atrás transcritos é correta”.
RESPOSTA
Em forma de simples opinião legal e não de parecer, em face da urgência requerida, passo a responder a consulta formulada pelo eminente presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, Dr. George Henrique Melão.
Considero correta a interpretação ofertada na consulta pela entidade de classe dos Delegados de São Paulo.
Fere, a meu ver, a Resolução, a competência de atribuições delimitada pela Constituição Federal, assim como a competência legislativa, com invasão de funções e atividades pertencentes exclusivamente ao Legislativo [1].
Por ser o direito constitucional meu campo de reflexão permanente, ater-me-ei, na resposta, exclusivamente, aos princípios, normas e regras da Lei Suprema, a meu ver tisnados pela referida Resolução, que me dispenso de transcrever, por transcrita já estar na consulta.
O Título V da Constituição Federal é dedicado à defesa do Estado e das Instituições Democráticas, estando seu campo normativo conformado nos artigos 136 a 144 da Carta Máxima.
Aricê Amaral dos Santos definia tal título como o do “Regime Constitucional das Crises”, pois dedicado a - profilática ou terapeuticamente - proteger o regime democrático de toda a patologia ideológica ou de inadaptação ao sistema vigente, que a sociedade venha apresentar [2].
Por ser, um título dedicado a preservar e/ou restabelecer a ordem e a lei, houve por bem o constituinte delimitar o título em duas ordens de regimes jurídicos, ou seja, o dos instrumentos legais para assegurar a governabilidade e estabilidade do sistema (estado de defesa e de sítio) e o dos agentes destinados a atuar, ou seja, as forças armadas, polícias militares e civis [3].
Assim é que os artigos 136 a 141 são dedicados aos dois instrumentos de intervenção do Estado, um deles mais regionalizado (estado de defesa) e outro mais abrangente (estado de sítio) e os arts. 142 a 144 a definição das corporações atuantes na proteção ao Estado Democrático de Direito. Às Forças Armadas foi atribuído proteger a integridade da nação, da lei e da ordem (142), assim como intervir na segurança pública, se necessário, por imposição constitucional. Cabe, por outro lado, às polícias militar e civis, a específica função de garantir a ordem interna, sendo atribuída às polícias militares a função ostensiva de assegurar a ordem e à polícia civil, aquela investigativa, própria da polícia judiciária e de apuração das infrações penais [4].
Em relação a estas últimas, o artigo 144 delimita claramente suas atividades e funções, estando seus § § 4º e 5º assim redigidos:
“§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§ 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.”
Claramente, a lei maior outorga funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, exceção feita às de caráter militar, às polícias civis [5].
A exceção se compreende, na medida em que a legislação militar -de maior rigidez que a civil para a determinação das obrigações de seus integrantes- prevê inclusive foro próprio para que tais infrações sejam julgadas, que é a Justiça Militar [6].
Ocorre, por outro lado, que toda a disciplina jurídica militar lastreia-se, como determina o artigo 142 “caput” - que vale, neste ponto, também para as polícias militares -, na hierarquia e na disciplina, estando assim redigido:
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifos meus) [7].
Em outras palavras, as polícias civis e militares, fundamentais para manutenção da segurança pública, têm funções nitidamente delimitadas na legislação superior, ou seja, nos dois respectivos parágrafos [8].
Não se pode esquecer que o “caput” do artigo 144 torna a segurança dever do Estado, sendo direito de todos os cidadãos de recebê-la e colaborar com as autoridades no exercício da cidadania, estando assim redigido o dispositivo:
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
Do exposto brevemente até o presente, decorre que a segurança pública, dever do Estado e direito dos cidadãos, será exercida pelos órgãos discriminados no dispositivo, entre os quais, COM COMPETÊNCIAS EXPLÍCITAS E DELIMITADAS, as polícias militares e civis.
Ora, a referida Resolução atropela a Constituição e embaralha as funções, atribuindo as funções de polícia civil à polícia militar, inclusive as de polícia judiciária, tornando esta corporação até mais relevante que a polícia civil, como polícia judiciária [10]. Tal ocorre não só por enunciação sempre à frente da polícia civil, como pelo amesquinhamento das funções da polícia civil, que deverá, como polícia judiciária, decidir, em conjunto com a polícia militar, o encaminhamento do processo investigatório, que tem início com o boletim de ocorrência, como se depreende dos seguintes trechos:
“Artigo 1º - As ocorrências policiais de furto de veículos, desaparecimento de pessoas, furto e perda de documentos, furto e perda de celulares, furto e perda de placas de veículos e encontro de pessoas desaparecidas, poderão ser registradas em boletim diretamente por policiais militares.
Parágrafo único – A critério do Comandante Geral da Polícia Militar e do Delegado Geral da Polícia Civil, em decisão conjunta e a bem do interesse público, o rol de ocorrências poderá ser ampliado ou reduzido.
Artigo 2º - ........
Artigo 3º - As informações constantes no Boletim de Ocorrência serão digitadas e/ou transmitidas eletronicamente para os sistemas informatizados das Polícias Militar e Civil para, respectivamente, serem utilizadas no planejamento operacional e darem prosseguimento às ações de polícia judiciária, sendo disponibilizadas no Sistema de Informações Criminais – INFOCRIM.
Artigo 4º - As Polícias Militar e Civil, no seu âmbito e havendo necessidade, baixarão normas complementares a fim de disciplinar a fiel execução do contido na presente resolução” (grifos meus).
Ora, não só a resolução invadiu claramente as funções da polícia civil definida pela Lei Suprema, como tornou mais relevante a Polícia Militar que a Civil nestas funções capturadas da Polícia Civil, pois, a partir do mencionado ato administrativo, todos os encaminhamentos para sua aplicação terão que ser conjuntos! [11]
É de se lembrar que na função ostensiva de preservação da ordem pública, à evidência, a abertura dos inquéritos será, em sua maioria, por atuação da polícia militar, com o que a função da polícia civil será praticamente reduzida às visitas espontâneas dos cidadãos às Delegacias, para denunciar ou pedir a abertura de processos investigatórios [12].
Não consigo vislumbrar no § 5º do art. 144 da C.F. as funções pretendidas pelo ilustre Secretário que assinou a Resolução, pois lá se determina, apenas, que as polícias militares farão
“policiamento ostensivo” e “preservação da ordem pública”,
podendo a lei determinar-lhes outras atribuições, desde que não sejam aquelas evidentemente já definidas também pela Lei Suprema, como de competência das polícias civis, ou seja, a de “polícia judiciária” e “apuração de infrações penais” [13].
O próprio artigo 141 da Constituição do Estado, não é senão um artigo reprodutivo daquele da Carta Magna, estando assim redigido:
“Artigo 141 - À Polícia Militar, órgão permanente, incumbem, além das atribuições definidas em lei, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.
§ 1º - O Comandante Geral da Polícia Militar será nomeado pelo Governador do Estado dentre oficiais da ativa, ocupantes do último posto do Quadro de Oficiais Policiais Militares, conforme dispuser a lei, devendo fazer declaração pública de bens no ato da posse e de sua exoneração.
§ 2º - Lei Orgânica e Estatuto disciplinarão a organização, o funcionamento, direitos, deveres, vantagens e regime de trabalho da Polícia Militar e de seus integrantes, servidores militares estaduais, respeitadas as leis federais concernentes.
§ 3º - A criação e manutenção da Casa Militar e Assessorias Militares somente poderão ser efetivadas nos termos em que a lei estabelecer.
§ 4º - O Chefe da Casa Militar será escolhido pelo Governador do Estado entre oficiais da ativa, ocupantes do último posto do Quadro de Oficiais Policiais Militares”,
Com o que não há qualquer conflito entre as disposições da Lei Suprema e as da Constituição do Estado, o que seria impossível em face de o artigo 25 da Carta Suprema declarar:
“Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.” [14]
Não discutirei questões de legislação infraconstitucional no presente parecer, embora seja de se lembrar que o § 3º do art. 5º do Código de Processo Penal assim redigido:
“§ 3º Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.”
Declara ser o boletim de ocorrência peça fundamental para os procedimentos da polícia judiciária, o que por si só afasta a possibilidade de invasão nas atribuições da polícia civil pela polícia militar [15].
Entendo, inclusive, que, se a Resolução for aplicada, no prazo de 180 dias, poderão, os advogados de indiciados, argüir em juízo a nulidade de processo investigatório, por incompetência da autoridade que lhe deu início.
Neste ponto, portanto, parece-me de manifesta inconstitucionalidade a Resolução mencionada na consulta.
Fere, também, por outro lado, a competência legislativa, já que não existe delegação válida para que o Executivo “legisle” sobre essa matéria de reserva absoluta do Poder Legislativo.
Atribui-se à nítida separação de Poderes, um dos elementos de maior estabilidade do Estado Democrático de Direito, a partir da Constituição de 1988.
Com efeito, o artigo 2º da Lei Suprema, assim redigido;
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”[16],
Com exceção das regras expressas no próprio título de delegação constitucional legislativa (arts. 62 e 68), permite a preservação das competências de cada poder, podendo, inclusive, o legislativo federal intervir em outros Poderes que tenham invadido a sua, como se lê no art. 49, inciso XI, assim redigido:
“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes; [17]
A grande diferença entre a nossa Constituição e a de países como Venezuela, Bolívia e Equador, é exatamente esta nítida separação, o que não ocorre nos textos maiores desses e de outros países, onde o Poder Executivo não só prevalece sobre os demais, podendo inclusive dissolver o Legislativo (Equador) e governar sem o congresso (Venezuela) e obrigar magistrados da Suprema Corte a concorrerem a eleições, como qualquer candidato parlamentar (Bolívia) [18].
Ora, a referida Resolução não é lastreada nem em lei, nem na Constituição. O eminente secretário da Segurança, na busca de soluções para o nível de criminalidade elevada do Estado, baixou “motu próprio”, sem respeito a lei maior, sem lei que o autorizasse, ato administrativo que invade a competência das polícias civis e, de certa forma, pretende subordiná-las às polícias militares, quando estão elas apenas subordinadas ao Poder Judiciário, enquanto polícias judiciárias. Vale dizer, em matéria penal, são elas que dão início ao processo investigatório, que poderá ou não levar à denúncia e à ação penal.
Ora, a inconstitucionalidade da resolução é evidente, embora indireta. É que, antes de ser inconstitucional, é ilegal, vale dizer, fere diretamente a lei e indiretamente a Constituição, pois a lei penal ou a que rege as polícias militares não autoriza tal invasão de funções e competência.
Muitos constitucionalistas têm entendido, por força da possibilidade de ações diretas de inconstitucionalidade contra atos normativos do Executivo (art. 102, inciso I, letra ‘a’), que, sempre que não houver lei e o ato normativo ferir a Constituição, este ferimento será direto, e não indireto, o que poderia, evidentemente, configurar o direito a levar a questão ao Judiciário, por via de controle concentrado [19].
Embora considere aplicável ao caso tal exegese, pois a Resolução carece de diploma legislativo, prefiro uma inteligência mais conservadora, ou seja, que fere a lei das competências legislativas do Estado, pois o artigo 144, § 4º, da C.F. fez menção clara a funções de polícia judiciária, assim como a Lei 8069/90, art. 173, § único, 176, 179, 193, Lei 11.340/66, art. 10, 11 e 12, § 2º, onde há referências às funções exclusivas da polícia civil [20].
Em outras palavras, embora de forma não específica, mas genérica, as leis mencionam as atividades de polícia judiciária como próprias das polícias civis, o que vale dizer, são estes dispositivos diretamente atingidos pela Resolução invasora das competências da polícia civil [21].
É de se lembrar, finalmente, que diversos dispositivos administrativos mostram ser o boletim de ocorrência o início de procedimento investigatório, como mencionam as Portarias Federais nºs. 5123/04, 2521/88, a P.Fed. 18/05, 11/09, F. 55/08, P. 682/05 – 1274/09, PF 387/06, PF 358/09, PF 10/10, IN 187/08, Decr. Federal 5123/2004 – SINARM – ARMA DE FOGO, Decr. Fed. 2521/1998 – TRANSPORTES RODOVIÁRIOS, Portaria Federal 18/2005 – Departamento de Logística – Explosivos, Port. Fed. 11/2009 – IBAMA, Port. 55/2008 – INEP- ENEN, Ministério da Defesa – Portaria 686/2005 – sobre arma de fogo, Ministério da Justiça, Portaria 1274/2003 – produtos químicos, Portaria Polícia Federal 387/2006 – Segurança Privada, Portaria Polícia Fed. 358/2009 – Seg. Privada, Portaria Federal 10/2010 – SECEX SECRET. DE COM. EXTERIOR, Portaria Fed. 131/2009 – Secretaria de Inspeção do Trabalho, Circular Susep, Instrução Normativa 187/2008 – IBAMA e Resolução CO BACEN Instituições Financeiras – Suspensão do atendimento.
Assim, muito embora defensável a tese de que a Resolução nº 90135 de 23/03/2011, por ser um ato deslastreado de legislação autorizativa, estaria ferindo diretamente a Constituição Federal, por invadir competência de instituições com funções delimitadas na lei suprema, prefiro entender que há direta ilegalidade, por não cumprir o que determina a legislação penal e aspectos das legislações federal e estadual, e indireta inconstitucionalidade, por ferir a lei suprema. Portanto, embora não exclua o controle concentrado, prefiro o controle difuso, através de mandado de segurança, para atalhar a aplicação da referida Resolução, que pretende retirar dos delegados de polícia suas atribuições exclusivas, claramente definidas na Lei Suprema [22].
Lembro, finalmente, que, embora se trate de matéria de prova, poderá haver na referida resolução o ferimento do princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Lei Suprema, assim transcrito:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”.
Ora, se a função da polícia militar é a de policiamento ostensivo, no momento em que invade funções atribuídas à polícia civil, está desviando sua atenção da questão maior que lhe cumpre, que é garantir a segurança.
Em outras palavras, para atender funções pertinentes à polícia civil, a corporação deverá destacar policiais para desempenhá-las reduzindo, em conseqüência os efetivos voltados ao desempenho de suas atribuições constitucionais que consistem no policiamento ostensivo. Ora, em tese, destacar policiais militares para desempenhar funções próprias de delegados civis é, à evidência, reduzir o contingente para policiamento ostensivo, o que poderia macular o princípio da eficiência, principalmente num Estado em que a violência continua a se manter em índices elevados [23].
Ao concluir, pois, esta breve opinião legal, salvo melhor juízo, entendo ser absolutamente correta a exegese apresentada pelo ilustre presidente do Sindicato consulente. A Resolução nº SSP 35/11 é diretamente ilegal e indiretamente inconstitucional, por criar competências não constantes de qualquer legislação sobre as funções de polícias judiciárias e por transbordar da competência que lhe é constitucionalmente atribuída, invadindo competências claramente destinadas às polícias civis, com exclusividade.
S.M.J.
São Paulo, 08 de Abril de 2011.
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