Em 10 de maio de 2012, o Supremo
Tribunal Federal aplicou mais um golpe letal na Lei 11.343-2006 - a Lei
de Drogas. Conforme consta em seu site oficial, a nossa
Suprema Corte "concedeu parcialmente Habeas Corpus para que um homem
preso em flagrante por tráfico de drogas possa ter o seu processo
analisado novamente pelo juiz responsável pelo caso e, nessa nova
análise, tenha a possibilidade de responder ao processo em liberdade.
Nesse sentido, a maioria dos ministros da Corte declarou,
incidentalmente, a inconstitucionalidade de parte do artigo 44 da Lei
11.343/2006 (Lei de Drogas), que proibia a concessão de liberdade
provisória nos casos de tráfico de entorpecentes". Trata-se do HC
104.339, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
A maioria formada no pleno da
Corte, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Luiz Fux e Joaquim Barbosa,
entendeu, em suma, que a regra referida feriria os princípios
constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal.
Com a devida vênia, a mencionada maioria parece olvidar que a segurança,
no sentido lato, também é um princípio fundamental da República brasileira, conforme prevê o caput do artigo 5o da Constituição de 1988. Ademais, prevê o artigo 144, caput, da mesma Magna Carta que a segurança pública (stricto sensu) é direito de todos e deve ser assegurada pelo Estado.
Ademais, a própria Constituição, ao estabelecer no artigo 5o,
inciso XLIII, que o crime de tráfico ilícito de drogas é insuscetível
de fiança, graça e anistia, demonstrou claramente a intenção do poder
constituinte originário em conferir tratamento diferenciado, mais rígido
a essa atividade criminosa. Isso se reafirma no inciso LI do mesmo
artigo, que permite a extradição, a qualquer tempo, de brasileiro
naturalizado, pelo envolvimento com tráfico de drogas. Logicamente, em
razão da nocividade à saúde das pessoas, sendo verdadeiro problema de
saúde pública, não poderia o constituinte inaugural atribuir outro
tratamento normativo ao tema.
Além disso - e o que é mais
grave -, o entendimento do STF no HC 104.339 afronta diretamente a norma
constitucional do inciso LXVI, do artigo 5o, da
Constituição. Ora, estabelece essa cláusula pétrea que "ninguém será
levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade
provisória, com ou sem fiança". Logo, a contrario sensu, se a lei não admitir a liberdade provisória, como o faz o artigo 44 da Lei de drogas (os crimes previstos nos artigos 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória),
inexiste qualquer inconstitucionalidade. Muito pelo contrário, a norma
pétrea expressamente defere à lei ordinária a fixação dos casos nos
quais se admitirá ou não que o acusado aguarde o julgamento em
liberdade. Assim, o constituinte originário deu ao constituinte derivado
(a maioria de plantão) o direito fundamental de escolher os delitos que
mereceriam ou não tratamento mais rigoroso em matéria de possibilidade
de concessão da liberdade provisória. E o Poder Legislativo fez essa
legítima escolha em relação ao tráfico de drogas, cuja decisão não
poderia ser desautorizada pelo STF, salvo se fosse demonstrada evidente
desproporcionalidade da medida (Exemplo: hipotética lei proibindo a
liberdade provisória para crimes ambientais).
Nesse sentido, entende-se que a
decisão incidental de inconstitucionalidade em tela se mostra desprovida
de fundamento constitucional, configurando-se em situação na qual o STF
(por sua maioria) extrapola seu dever institucional de guardião máximo e
derradeiro da Constituição Federal, arvorando-se em funções
legislativas, em prejuízo de outra cláusula pétrea: o princípio da
separação dos Poderes. Nessa esteira, a decisão contribui, exatamente
por incrementar o sentimento de inoperância da máquina judiciária na
esfera criminal, para uma maior descrença da sociedade aberta de
intérpretes na força normativa da Constituição.
Embora o entendimento do STF
tenha se dado - ainda bem - em sede de controle difuso-concreto de
constitucionalidade, em cuja espécie sabidamente inexiste eficácia erga omnes
e nem efeito vinculante, sabe-se que a "força moral" (o famoso apelo
exagerado à quase santidade da presunção de inocência) da decisão
influenciará diversos juízos singulares e colegiados, podendo ocasionar
uma soltura desenfreada de traficantes primários.
Se o leitor bem notou, eu
mencionei no início deste texto que o julgamento de ontem do STF foi
mais um golpe na Lei de drogas. Pois bem, o ataque anterior a que me
refiro se trata da decisão incidental do STF no Habeas Corpus 97.256,
que afastou a expressão "vedada a conversão em penas restritivas de
direitos" do inciso 4º do artigo 33 da Lei 11.343, de 23 de agosto de
2006, sob o argumento de violar a garantia constitucional da
individualização da pena (DJE de 15 de dezembro de 2010). Informado o
Senado Federal, houve a suspensão do citado trecho da Lei de drogas do
ordenamento jurídico brasileiro através da Resolução 05-2012 (DOU de 16
de fevereiro de 2012), nos termos do artigo 52, inciso X, da
Constituição Federal.
Se continuar nesse ritmo, poucos
traficantes permanecerão presos durante a tramitação das respectivas
ações penais, possibilitando-se que continuem comercializando drogas,
destruindo famílias e, inevitavelmente, matando pessoas. Não se entende a
motivação de que a mais alta Corte brasileira, por sua maioria, apoie e
fortaleça o "garantismo à brasileira", com decisões violadoras da
Constituição e severamente comprometidas com a impunidade. Seria apenas
para tentar diminuir o número de presos em cadeias e penitenciárias? Se a
resposta verdadeira for positiva (espero que não), a Suprema Corte
também estaria invadindo atribuições legal-constitucionais do Poder
Executivo (responsável pelo sistema carcerário).
Diante do exposto, exorta-se ao
Senado Federal para que não suspenda a expressão declarada
inconstitucional no HC 104.339, devendo, por outro lado, como casa
componente do Parlamento brasileiro, fomentar a discussão sobre a
melhoria da Lei de drogas, ao invés de proporcionar seu esvaziamento
total. Augura-se, por último, que o STF (por sua maioria) consiga
efetivamente se manter nos limites de suas atribuições constitucionais,
proferindo decisões que observem o texto constitucional (suas regras,
normas e princípios) e reforcem a normatividade da Magna Carta.
Por João Conrado Blum Júnior, Promotor de Justiça no Estado do Paraná.
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