segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Em 15 anos de greves de policiais, ainda não entendemos que são um fenômeno social, diz especialista

Em 15 anos de greves de policiais, ainda não entendemos que são um fenômeno social, diz especialista

Domingo, 11 de Fevereiro de 2012, 17h04
Christian Carvalho Cruz, de O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO – A presidente Dilma Rousseff disse que ficou “estarrecida”. O governador Jaques Wagner, que não negociaria nem anistiaria “bandido”. Os grevistas, misturando ameaça com galhofa, que “ôôô, o Carnaval acabou”. Os analistas, que greve de policial é “motim”. E as manchetes, que 148 pessoas foram assassinadas na Bahia durante a paralisação (o dobro do mesmo período em 2011) e que o movimento se espraiara para o Rio de Janeiro.
No meio de tantas aspas, as do sociólogo José Vicente Tavares dos Santos são menos inflamadas mas não menos contundentes. Doutor pela Université de Paris X e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele estuda greves no sistema de segurança pública do País desde 1997. Diz que o Brasil perdeu a chance de discutir suas polícias na Constituinte de 1988 e agora paga o preço de uma crise organizacional que chega ao cúmulo de as academias ensinarem cadetes a dobrarem o lençol em vez de mediar conflitos.
Segundo Santos, faz 15 anos que as greves de agentes de segurança pública se repetem – e vão continuar se repetindo. “Pela abrangência e pela constância das paralisações, estamos diante de um fenômeno social. E o que podemos tirar de bom dessa crise é a oportunidade de retomar um debate tão crucial da vida brasileira. Afinal, queremos ter um serviço policial ou uma força policial?” A seguir, suas ideias.
Alguns analistas consideram a Polícia Militar um resquício da ditadura sem lugar numa sociedade democrática. Qual a sua opinião?
O golpe de 1964 abortou um processo que encaminhava as polícias brasileiras para serem órgãos de defesa da ordem pública e do cidadão. Nos anos 50, por exemplo, havia um batalhão no Rio de Janeiro chamado Cosme e Damião – no Rio Grande do Sul o nome era batalhão Pedro e Paulo -, cujos policiais andavam em dupla e tinham todas as funções que os ingleses depois batizaram de polícia comunitária. Mas em 1967 uma lei da ditadura transformou as polícias militares em órgãos auxiliares das Forças Armadas e militarizou o ensino policial. A PM precisa se adequar ao trabalho em uma sociedade democrática.
Quais os caminhos para isso?
O ensino policial é fundamental. Militarismo excessivo, com seus regulamentos disciplinares e rigidez hierárquica, não faz mais sentido. Há academias de polícia em que os alunos são obrigados a arrumar o lençol da cama em forma de estrela num dia, de lua no outro e assim por diante, sob o risco de serem punidos se errarem. O que isso tem a ver com o ofício de policial? Também faltam noções de direitos humanos, de investigação criminal, algo básico mas incrivelmente precário no Brasil. E mediação de conflito. No mundo todo, 70% das ocorrências atendidas pela polícia são conflitos ainda não criminais. Dependendo da abordagem, esse tipo de ocorrência pode se transformar em crime, às vezes com a participação direta do policial. É evidente que temos mais a ganhar ensinando policiais a mediar conflitos do que a arrumar o lençol. Policial deve ser educado, e não adestrado, para executar suas funções. Falo de algo sério, pois estamos desperdiçando recursos humanos e financeiros. Esse é apenas um dos aspectos da crise organizacional das polícias brasileiras.
A questão salarial é outro?
Obviamente. Eu sou a favor de um piso nacional, mas precisamos discutir o valor. A PEC 300 (Proposta de Emenda à Constituição) toma como padrão o salário no Distrito Federal. Mas ali os salários são pagos pelo governo federal. O debate deve levar em conta a sustentabilidade dos Estados. Recursos há, afinal eles não faltam para construir estádios de futebol de bilhões de reais. Outro aspecto, ligado a este, são as condições de trabalho do policial, seja militar, civil, federal, bombeiro, não importa. Nas polícias civis os turnos são de 24 horas por 72 de descanso. Ora, ninguém se mantém atento por 24 horas sem dormir. Isso é um absurdo. Há relatos de turnos de 24 horas em pé. E isso é inumano. Algo mais básico: são raras as policiais que têm coletes à prova de bala adequados à anatomia feminina; nem todas as polícias oferecem seguro de vida aos seus agentes. Enfim, são profissionais fundamentais para a sociedade que não têm o devido reconhecimento por parte dessa mesma sociedade e dos governos. As greves refletem essa insatisfação.
Greve de profissionais autorizados a trabalhar armados é motim ou instrumento político?
Em 2012 completamos 15 anos de greves de policiais no Brasil. Elas abrangeram todas as categorias e nenhum Estado passou incólume. Foram 150 greves organizadas por policiais civis, 34 por policiais militares (incluindo bombeiros), 18 por policiais federais, 22 por guardas civis e 60 por agentes penitenciários. Nesse período somente Amapá e Amazonas tiveram uma greve cada. Na Bahia foram 14. Em São Paulo, 17. Pela abrangência e pela constância, estamos claramente diante de um fenômeno social. Há enorme dificuldade do poder público e da imprensa de reconhecer a legitimidade dessas mobilizações como luta social de uma categoria por melhores condições de vida. Essas greves mostram que as pessoas estão se sentindo desrespeitadas nos seus direitos de cidadãos e trabalhadores.
Mas na Bahia líderes grevistas incentivaram atos de vandalismo e suspeita-se que policiais encapuzados tenham invadido ônibus. Não houve excessos?
Claro que houve. Inclusive os trabalhadores devem reconhecer que fazem parte de um processo político. Sua legitimidade depende disso. Alguns métodos adotados na Bahia passaram longe da política. Por outro lado, é inútil discutir se tal partido apoiou a greve quando era de oposição e agora é contra porque está no governo. Ou se tal liderança grevista é filiada a esse ou àquele partido. É inútil porque partido brasileiro nenhum tem uma agenda de segurança pública. O máximo que conseguem fazer é apelar ao discurso repressivo de “mais polícia na rua” em época eleitoral. Trata-se de um vácuo que remonta à Constituinte de 1988. Na ocasião as forças democráticas de esquerda já não tinham propostas de segurança pública a não ser a condenação da violação aos direitos humanos praticada pelas polícias. Agora que as greves de policiais estão aí é preciso reconhecer nelas uma forma de luta social como tantas outras. Negar esse fato valendo-se de palavras como “motim”, ou tentando partidarizar a questão, é um desserviço à democracia. A crise na Bahia traz mais uma vez a oportunidade de elevar o nível da discussão sobre as nossas necessidades em termos de segurança pública. Afinal, queremos ter um serviço policial ou uma força policial? Este é o debate que se impõe.

2 comentários:

  1. Muito interessante o artigo. Precisamos refletir.

    Almeida

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  2. A verdade é que os Estados não são competentes (eficientes e eficazes) para tratar da Segurança Pública, e na maioria das vezes o amadorismo reina, além do eventualismo (quebra galho) das ações. O ambiente reflete bem o descaso, porém não percebem os estores públicos que o público que necessita da Polícia não é apenas a camada mais pobre,e sim todas as camadas sociais.
    O reflexo das greves das Polícias servirá para se dar um novo rumo de modificações na estrutura do sistema de segurança pública no Brasil.
    Por isso defendo a criação do Ministério da Segurança Pública.
    Nilvan.

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