Em 15 anos de greves de policiais, ainda não entendemos que são um fenômeno social, diz especialista
Domingo, 11 de Fevereiro de 2012, 17h04
Christian Carvalho Cruz, de O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO – A presidente Dilma Rousseff
disse que ficou “estarrecida”. O governador Jaques Wagner, que não
negociaria nem anistiaria “bandido”. Os grevistas, misturando ameaça com
galhofa, que “ôôô, o Carnaval acabou”. Os analistas, que greve de
policial é “motim”. E as manchetes, que 148 pessoas foram assassinadas
na Bahia durante a paralisação (o dobro do mesmo período em 2011) e que o
movimento se espraiara para o Rio de Janeiro.
No meio de tantas aspas, as do sociólogo
José Vicente Tavares dos Santos são menos inflamadas mas não menos
contundentes. Doutor pela Université de Paris X e professor titular da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele estuda greves no sistema
de segurança pública do País desde 1997. Diz que o Brasil perdeu a
chance de discutir suas polícias na Constituinte de 1988 e agora paga o
preço de uma crise organizacional que chega ao cúmulo de as academias
ensinarem cadetes a dobrarem o lençol em vez de mediar conflitos.
Segundo Santos, faz 15 anos que as greves
de agentes de segurança pública se repetem – e vão continuar se
repetindo. “Pela abrangência e pela constância das paralisações, estamos
diante de um fenômeno social. E o que podemos tirar de bom dessa crise é
a oportunidade de retomar um debate tão crucial da vida brasileira.
Afinal, queremos ter um serviço policial ou uma força policial?” A
seguir, suas ideias.
Alguns analistas consideram a Polícia Militar um resquício da ditadura sem lugar numa sociedade democrática. Qual a sua opinião?
O golpe de 1964 abortou um processo que
encaminhava as polícias brasileiras para serem órgãos de defesa da ordem
pública e do cidadão. Nos anos 50, por exemplo, havia um batalhão no
Rio de Janeiro chamado Cosme e Damião – no Rio Grande do Sul o nome era
batalhão Pedro e Paulo -, cujos policiais andavam em dupla e tinham
todas as funções que os ingleses depois batizaram de polícia
comunitária. Mas em 1967 uma lei da ditadura transformou as polícias
militares em órgãos auxiliares das Forças Armadas e militarizou o ensino
policial. A PM precisa se adequar ao trabalho em uma sociedade
democrática.
Quais os caminhos para isso?
O ensino policial é fundamental.
Militarismo excessivo, com seus regulamentos disciplinares e rigidez
hierárquica, não faz mais sentido. Há academias de polícia em que os
alunos são obrigados a arrumar o lençol da cama em forma de estrela num
dia, de lua no outro e assim por diante, sob o risco de serem punidos se
errarem. O que isso tem a ver com o ofício de policial? Também faltam
noções de direitos humanos, de investigação criminal, algo básico mas
incrivelmente precário no Brasil. E mediação de conflito. No mundo todo,
70% das ocorrências atendidas pela polícia são conflitos ainda não
criminais. Dependendo da abordagem, esse tipo de ocorrência pode se
transformar em crime, às vezes com a participação direta do policial. É
evidente que temos mais a ganhar ensinando policiais a mediar conflitos
do que a arrumar o lençol. Policial deve ser educado, e não adestrado,
para executar suas funções. Falo de algo sério, pois estamos
desperdiçando recursos humanos e financeiros. Esse é apenas um dos
aspectos da crise organizacional das polícias brasileiras.
A questão salarial é outro?
Obviamente. Eu sou a favor de um piso
nacional, mas precisamos discutir o valor. A PEC 300 (Proposta de Emenda
à Constituição) toma como padrão o salário no Distrito Federal. Mas ali
os salários são pagos pelo governo federal. O debate deve levar em
conta a sustentabilidade dos Estados. Recursos há, afinal eles não
faltam para construir estádios de futebol de bilhões de reais. Outro
aspecto, ligado a este, são as condições de trabalho do policial, seja
militar, civil, federal, bombeiro, não importa. Nas polícias civis os
turnos são de 24 horas por 72 de descanso. Ora, ninguém se mantém atento
por 24 horas sem dormir. Isso é um absurdo. Há relatos de turnos de 24
horas em pé. E isso é inumano. Algo mais básico: são raras as policiais
que têm coletes à prova de bala adequados à anatomia feminina; nem todas
as polícias oferecem seguro de vida aos seus agentes. Enfim, são
profissionais fundamentais para a sociedade que não têm o devido
reconhecimento por parte dessa mesma sociedade e dos governos. As greves
refletem essa insatisfação.
Greve de profissionais autorizados a trabalhar armados é motim ou instrumento político?
Em 2012 completamos 15 anos de greves de
policiais no Brasil. Elas abrangeram todas as categorias e nenhum Estado
passou incólume. Foram 150 greves organizadas por policiais civis, 34
por policiais militares (incluindo bombeiros), 18 por policiais
federais, 22 por guardas civis e 60 por agentes penitenciários. Nesse
período somente Amapá e Amazonas tiveram uma greve cada. Na Bahia foram
14. Em São Paulo, 17. Pela abrangência e pela constância, estamos
claramente diante de um fenômeno social. Há enorme dificuldade do poder
público e da imprensa de reconhecer a legitimidade dessas mobilizações
como luta social de uma categoria por melhores condições de vida. Essas
greves mostram que as pessoas estão se sentindo desrespeitadas nos seus
direitos de cidadãos e trabalhadores.
Mas na Bahia líderes grevistas
incentivaram atos de vandalismo e suspeita-se que policiais encapuzados
tenham invadido ônibus. Não houve excessos?
Claro que houve. Inclusive os
trabalhadores devem reconhecer que fazem parte de um processo político.
Sua legitimidade depende disso. Alguns métodos adotados na Bahia
passaram longe da política. Por outro lado, é inútil discutir se tal
partido apoiou a greve quando era de oposição e agora é contra porque
está no governo. Ou se tal liderança grevista é filiada a esse ou àquele
partido. É inútil porque partido brasileiro nenhum tem uma agenda de
segurança pública. O máximo que conseguem fazer é apelar ao discurso
repressivo de “mais polícia na rua” em época eleitoral. Trata-se de um
vácuo que remonta à Constituinte de 1988. Na ocasião as forças
democráticas de esquerda já não tinham propostas de segurança pública a
não ser a condenação da violação aos direitos humanos praticada pelas
polícias. Agora que as greves de policiais estão aí é preciso reconhecer
nelas uma forma de luta social como tantas outras. Negar esse fato
valendo-se de palavras como “motim”, ou tentando partidarizar a questão,
é um desserviço à democracia. A crise na Bahia traz mais uma vez a
oportunidade de elevar o nível da discussão sobre as nossas necessidades
em termos de segurança pública. Afinal, queremos ter um serviço
policial ou uma força policial? Este é o debate que se impõe.
Muito interessante o artigo. Precisamos refletir.
ResponderExcluirAlmeida
A verdade é que os Estados não são competentes (eficientes e eficazes) para tratar da Segurança Pública, e na maioria das vezes o amadorismo reina, além do eventualismo (quebra galho) das ações. O ambiente reflete bem o descaso, porém não percebem os estores públicos que o público que necessita da Polícia não é apenas a camada mais pobre,e sim todas as camadas sociais.
ResponderExcluirO reflexo das greves das Polícias servirá para se dar um novo rumo de modificações na estrutura do sistema de segurança pública no Brasil.
Por isso defendo a criação do Ministério da Segurança Pública.
Nilvan.