O procurador que investiga com o TCU casos de corrupção no governo denuncia que interesses políticos impedem a punição dos culpados
Por: Lúcio VazALERTA
"Tudo é ignorado até o momento em que os escândalos
estouram. Aí, sim, vão atrás do que o tribunal fez e
descobrem que isso já foi alertado há muitos anos"
Procurador do Ministério Público do Tribunal de Contas da União há 16 anos, Marinus Marsico, 51, conhece todos os meandros utilizados por autoridades e empresários para desviar dinheiro do Erário. Antes de chegar ao TCU, atuou no controle interno da Presidência da República e foi auditor do Tesouro Nacional. Marsico considera o trabalho do tribunal técnico e profundo, mas faz uma constatação preocupante: “Nós somos uma espécie de cassandras do serviço público”, diz, referindo-se à personagem mítica que antevia as desgraças, mas que jamais era ouvida. O escândalo que derrubou o ministro Alfredo Nascimento e toda a cúpula do Ministério dos Transportes não foi novidade. “Não há técnico do tribunal que não conheça os problemas do Dnit”, afirma. Marinus reconhece que as decisões do TCU nem sempre são ágeis, mas afirma que isso ocorre, em parte, por interesses políticos. Ele cita como exemplo a decisão do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva de excluir, por meio de vetos, projetos da lista de obras irregulares. “Entendo que, nesse caso, teria havido até uma interferência na autonomia do Poder Legislativo.” O procurador também explica por que alguns processos duram até dez anos no tribunal. “Há uma exacerbação da ampla defesa”, afirma. “Por meio de chicanas jurídicas, com uma série de recursos, é possível prolongar excessivamente os processos.”
"O caso do TRT de São Paulo é exemplar. O Grupo OK,
do Luiz Estevão, propõe pagar meio bilhão de reais,
um retorno inédito de recursos para a União"
Sobre a queda do ministro Alfredo Nascimento:
"Não é novidade para nós. Não há técnico do
TCU que não conheça os problemas do Dnit"
Istoé - O novo escândalo em torno de desvio de recursos públicos, agora a partir da execução de obras no Ministério dos Transportes, chega a ser uma novidade?
Marinus Marsico - É claro que isso não é novidade para nós. O Dnit sempre foi um órgão bastante problemático na visão do TCU. Não há técnico do tribunal que não conheça os problemas do Dnit. E há vários anos que o tribunal vem relatando e alertando os gestores públicos sobre esses problemas, não só no Dnit, mas nos diversos órgãos da administração que temos como problemáticos. Mas o que falamos não é ouvido. Nós somos uma espécie de cassandra do serviço público. Falamos, falamos e ninguém escuta, tudo é ignorado, até o momento em que os escândalos estouram. Aí, sim, vão atrás do que o tribunal fez e descobrem que isso já foi alertado há muitos anos.
Istoé - Isso não passaria a ideia de que o trabalho do tribunal é inútil?
Marinus Marsico - Eu não falo em nome do tribunal. Quem fala é o presidente. O que eu posso dizer é que o trabalho do tribunal é de extrema excelência, bastante profundo e imparcial. Infelizmente, se o tribunal não consegue dar maior efetividade às suas decisões, isso decorre de outros fatores, como os fatores políticos. Veja o que estão querendo fazer agora em relação à fiscalização de obras públicas pelo tribunal.
Istoé - O sr. se refere a que exatamente?
Marinus Marsico - Eu me refiro às restrições em relação ao trabalho do TCU que se colocam na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). É mais burocratizado, ou seja, é necessário agora que o pleno do tribunal decida para que uma obra possa ser interrompida. Não que propugnemos as paralisações, mas há casos graves em que alguns dias podem significar alguns milhões de reais em desperdício de dinheiro público. Então, isso exige uma ação mais ágil do tribunal.
Istoé - Nos últimos anos, o Congresso não tem determinado a paralisação de muitas das obras apontadas pelo tribunal como irregulares. Como o sr. analisa isso?
Marinus Marsico - Realmente nós não podemos partilhar disso. Mas acho saudável que esse debate se dê também no Congresso. A decisão do tribunal é indicativa, cabendo ao Congresso decidir soberanamente. Nós passamos por diversas fases em relação a esse tema. Primeiro, houve uma negação do trabalho técnico do TCU. O que se dizia é que o tribunal paralisava obras, mas isso não ocorre. Há apenas a indicação dos problemas que resultam nas paralisações. Um ministro de Estado chegou a dizer que o tribunal paralisava uma obra por causa da maçaneta de uma porta. Fizemos uma pesquisa e apuramos que isso nunca existiu. Depois, passou a existir um movimento contra o tribunal, que estaria extrapolando as suas prerrogativas, interferindo nas funções do Executivo. Agora, finalmente, estão reconhecendo o trabalho técnico do tribunal.
Istoé - No penúltimo ano de governo, o presidente Lula chegou a excluir três obras da lista do TCU por meio de vetos. O que o sr. achou daquela decisão?
Marinus Marsico - Eu vejo com muita preocupação esse tipo de situação, uma vez que quem exerce o controle externo é o Congresso. Quem deveria excluir uma obra dessa lista seria o Parlamento. Entendo que, nesse caso, teria havido até uma interferência na autonomia do Poder Legislativo. É claro que, do ponto de vista formal, o presidente pode vetar e o Congresso pode derrubar o veto também. Mas essa iniciativa, por si só, denota uma interferência indevida em assuntos que não são do Executivo.
Istoé - O TCU enfrenta ainda um problema crônico: a demora na tramitação dos processos, pelo excessivo número de recursos. Isso acaba dificultando a recuperação dos recursos desviados. Qual a saída?
Marinus Marsico - Não só no trabalho do tribunal. Eu diria que na administração pública por inteiro. Nós temos um vício de burocratizar a administração e não punir os gestores públicos que cometem mal-feitos. Como somos deficientes na repressão e na punição, burocratizamos o sistema, na vã esperança de que, quanto maior for a burocratização nas contratações, mais difícil será evitar os desvios. Isso não é verdade. Quanto mais burocratizamos, mais brechas deixamos para que pessoas inescrupulosas e com uma inteligência criminosa possam pular regras da administração para atingir seus objetivos imorais.
Istoé - Por que no Brasil alguns processos demoram até dez anos para ser julgados?
Marinus Marsico - Nós temos o princípio da ampla defesa. Mas a questão principal é a burocracia. Há uma exacerbação da ampla defesa. Por meio de chicanas jurídicas, com uma série de recursos, é possível prolongar excessivamente os processos. Na Justiça há a figura do litigante de má-fé, aquele que propositadamente procura tão somente estender o processo por vários anos. Estamos fazendo um trabalho de longo prazo no sentido de melhorar a recuperação desses recursos. E agora começamos a colher os resultados. Já se observa hoje uma multiplicação de condenados pelo tribunal que vão espontaneamente à Advocacia Geral da União para recolher esses recursos ou tentar o parcelamento. O caso mais exemplar é o do TRT de São Paulo. O Grupo OK, do ex-senador cassado Luiz Estevão, está fazendo uma proposta de acordo judicial, e inicialmente já propõe pagar meio bilhão de reais. O débito atual chega perto de R$ 900 milhões. Seria um retorno inédito de recursos públicos para a União.
Istoé - A alteração do código processual depende da alteração da Lei Orgânica do TCU. Por que isso não acontece?
Marinus Marsico - A Lei Orgânica do tribunal, em alguns pontos, é anacrônica. É a única que permite recurso após cinco anos da condenação. Isso sobrecarrega o nosso trabalho. Essa lei necessita de uma profunda alteração para tornar o trabalho do tribunal mais ágil.
Istoé - Outro momento de confronto entre o TCU e o governo federal foi gerado pelo uso abusivo de cartões corporativos. A regulamentação desse instrumento ficou satisfatória?
Marinus Marsico - Há um controle um pouco mais apurado, uma vez que o tribunal fez uma imensa lista de recomendações. Em termos globais, o que houve foi uma redução nos gastos com cartões, até porque o que aconteceu naquela época foi algo até simbólico.Você, desavisadamente, colocou um cartão de crédito no bolso de um gestor público. Houve órgãos em que um terço dos servidores possuía cartões corporativos. Isso não existe. Esse cartão foi criado para substituir o suprimento de fundos, que era feito por um em cada 100 servidores em média. Então, o que aconteceu foi um gasto desbragado. Em algumas situações, o saque mínimo era de R$ 400. E havia gestores que iam ao caixa e sacavam esse valor todos os dias, algo muito sintomático. O que houve, do ponto de vista normativo, foi o aperfeiçoamento sobretudo desses saques. Infelizmente, porém, foram criados aqueles gastos sigilosos com cartões corporativos, algo que eu não concordo. Ocorreu na Presidência da República e em alguns órgãos de inteligência. Nesses casos, o controle ficou deficiente.
Istoé - Há esse sigilo também para o tribunal?
Marinus Marsico - Para o órgão de controle não deveria ter o sigilo. O Ministério Público não teria condições hoje de pedir esses dados. Seria necessária uma mobilização muito profunda do próprio tribunal.
Istoé - Como está o acompanhamento da compra de medicamentos para atender hemofílicos, um setor que recebeu severas críticas do TCU?
Marinus Marsico - Há progressos, mas essa ainda é uma das maiores afrontas aos direitos humanos neste país: o tratamento dado nos Estados aos portadores de coagulopatias. Eles são a parcela da população doente mais sensível que existe. Imagina alguém que, quando fica tenso, sangra até morrer. Infelizmente, eles são uma minoria e não rendem votos. A verdade é essa: são pouco mais de dez mil hemofílicos. Entretanto, passam por mazelas indescritíveis neste país.
Istoé - Em que regiões os problemas são mais graves?
Marinus Marsico - No Distrito Federal, temos problemas de ordem político-ideológica. Já relatei isso à ministra de Direitos Humanos. A aquisição de medicamentos foi equiparada, pelo tribunal, aos serviços de natureza contínua para não haver a interrupção dos estoques. Isso está caminhando bem. Além disso, está em fase de contratação a transferência de tecnologia de medicamentos sintéticos para tratamento de hemofilia, e não mais a partir do sangue, por um preço bastante razoável. Mas, entre a compra do medicamento e a sua entrega aos pacientes, temos um longo caminho, o que me preocupa bastante.
Fonte: Revista IstoÉ - Editora Três
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