segunda-feira, 25 de julho de 2011

Polícia de ciclo completo ou ciclo completo da conspiração?


POLÍCIA DE CICLO COMPLETO OU CICLO COMPLETO DA CONSPIRAÇÃO?

Por Nestor Sampaio Penteado Filho

1. Segurança Pública na Constituição Federal A CF de 1988 reservou no seu Título V, seção III, o capítulo III para a Segurança Pública, dedicando-lhe o longo art. 144. Não é desconhecido dos neófitos em direito que o Estado Democrático de Direito (art. 1º, CF) é balizado e limitado por normas constitucionais de eficácia plena, as quais consubstanciam direitos e garantias individuais, oponíveis erga omnes, sobretudo ao próprio Estado (art. 5º, incisos I a LXXVIII e §§ 1º a 4º, CF). Sabe-se também que as normas veiculadoras de direitos e garantias fundamentais irrompem com a característica de não serem objeto de reforma constitucional supressiva ou modificativa de conteúdo, adquirindo natureza jurídica de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, CF).

O núcleo duro de direitos humanos fundamentais que limitam a ação arbitrária do Estado revela a existência, no caput do art. 5º da CF, de cinco direitos fundamentais mínimos e inerentes ao ser humano: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.

Neste trabalho, interessa mais de perto estabelecer o que se delimita por segurança, a quem compete fornecê-la ao indivíduo e quais suas vertentes de aplicação. A segurança pode ser definida sob dúplice aspecto: a segurança pública em sentido estrito, que se volta em oposição à vis inquietativa, por intermédio das Instituições delimitadas, ratione loci e ratione materiae no predito art. 144 e a segurança jurídica, na exata medida da tutela das relações interpessoais, com a garantia da coisa julgada (decisão judicial irrecorrível), do ato jurídico perfeito (aquele que reuniu os elementos necessários à sua configuração- agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não proibida pela lei) e do direito adquirido (aquele definitivamente incorporado ao patrimônio do seu titular), e do próprio direito de se submeter à legalidade.

Destarte, em sede de Segurança Pública, a CF asseverou tratar-se de dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, devendo ser exercitada para preservação da ordem pública e da incolumidade e patrimônio das pessoas, por intermédio dos órgãos apontados nos incisos I a V do art. 144.

Nesse prisma deflui que às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exceto as militares (§ 4º, art. 144).

 De outra banda, afirmou o texto constitucional (§ 5º, art. 144), que às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Vejamos o sentido de uma e outra atividade.

2. Polícia Judiciária e Polícia de Segurança A Polícia Judiciária (polícias civis estaduais e polícia federal), vista como órgão auxiliar da Justiça Penal, exercita uma série de atividades investigatórias documentadas e formalizadas em um instrumento procedimental denominado inquérito policial. Este, no abalizado escólio do saudoso professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo , consiste “em investigação do fato, na sua materialidade e da autoria, ultimada pela denominada polícia judiciária. Em resumo, pois, um procedimento de investigação administrativa, em sentido estrito, que mediante a atuação da polícia judiciária, guarda a finalidade de apurar a materialidade da infração penal, cometida ou tentada, e a respectiva autoria, ou co-autoria, para servir ao titular da ação penal condenatória”.

De outra banda, a Polícia de Segurança (Polícias Militares) tem por objetivo a adoção de medidas preventivas visando a não alteração da ordem jurídica estabelecida. Ilustra o douto Fernando Tourinho que “a função da Polícia de Segurança, conforme adverte Sabatini, exterioriza-se em meios preventivos que se realizam para evitar toda possível causa de turbação da ordem jurídica, ou de dano, ou de perigo às pessoas ou às coisas”.

Tais medidas preventivas se caracterizam pelo policiamento ostensivo (visível a olhos nus) e fardado (identificado ex visu) nos locais de incidência criminal, mediante a ocupação racional de espaços. Assim sendo, verifica-se que as funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais foram atribuídas às polícias civis, no âmbito dos Estados e as funções de polícia de segurança foram contempladas para as polícias militares estaduais.

De outro lado, a prevenção das infrações penais é tarefa da polícia militar e conquanto falhe entra em cena a polícia civil para apurar e investigar os delitos não evitados por aquela. Trata-se de matéria regrada pela Carta Maior, descabendo ao legislador ordinário modificar-lhe a essência ou o alcance. Nem mesmo por meio de proposta de emenda constitucional, já que a segurança pública, posta como está, é um dos direitos fundamentais do homem, transmutada em cláusula pétrea; cuidando-se, por conseguinte, de núcleo constitucional imodificável (art. 60, § 4º, IV, CF). Na atual sistemática constitucional brasileira, a única forma de se alterar a estruturação da segurança pública ou das competências dos órgãos responsáveis por ela dá-se por meio do poder constituinte originário exercido por uma Assembléia Constituinte. Qualquer outra manifestação midiática soa como golpismo ou ranço de uma ditadura que não queremos.

3. O propalado ciclo completo e as origens da Polícia Militar Atualmente o pessoal da caserna vem propagando a tese de que a defesa social sobrepõe-se à noção de segurança pública, sendo necessário que o mesmo órgão que tomou conhecimento da notitia criminis desenvolva os demais atos de persecução criminal. O coronel PM aposentado Amauri Meirelles , de Minas Gerais, asseverou que “nos tempos atuais, a defesa social, revigorada com novíssima interpretação, propugna que a proteção da sociedade não se atém à espécie-crime, mas, sim, ao gênero-ameaças, englobando, ainda, os desastres e a interrupção de serviços essenciais.

 O provimento da proteção é realizado pelo Estado, portanto, através de mecanismos de defesa, operacionalizados pelas inúmeras polícias, através poder ou força, mediante desempenho de função administrativa ou persecutória”. Outros militares também comungam do mesmo anseio – competência para investigar as infrações penais não militares.

As razões que sustentam tal tese corporativista e surreal são várias, todas elas desprovidas de cunho científico: atribuir-se o ciclo completo à polícia militar permitiria que seus homens ficassem mais tempo nas ruas evitando-se a perda de horas nas delegacias, permitindo-se à polícia civil investigar os delitos mais graves; inexistência na realidade do modelo bipartido francês de polícia administrativa e polícia judiciária etc.

É oportuno lembrar que a prevenção criminal é também atribuição da polícia militar, por meio do policiamento ostensivo.

No entanto, só no Estado de São Paulo , no ano de 2008, a título de ilustração, houve 4426 homicídios dolosos; 278.037 roubos, inclusive de veículos e 587.501 furtos, inclusive de veículos.

Destarte, é mister que a polícia militar desloque seu contingente para o policiamento ostensivo, retirando-o de segmentos burocratizados de outras esferas de poder e concentre suas ações nas tarefas que lhe cabem, em vez de açambarcar funções de outros órgãos.

Ad argumentandum tantum, importante se faz lembrar a origem da corporação policial militar que, segundo Bismael Batista de Moraes advém da ditadura militar, in verbis, “O General-de-Exército Arthur da Costa e Silva, na Presidência da República, já com o Congresso Nacional fechado, e com base no AI-5, baixou o Dec.-lei 667, de 02/07/1969, que reorganizava, nos moldes mais adequados ao Regime Militar de então, as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal”.

Em seqüência disso, o Governador nomeado (e não eleito pelo povo) de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré baixou o Decreto Estadual nº. 217 de 08/04/1970 extinguindo a guarda civil e a força pública, criando a polícia militar, em obediência fiel aos ditames do governo central militarista.

Por evidente, desponta tal órgão em suas origens como jungido às práticas de exceção; nascido do ventre do arbítrio e da supressão dos direitos humanos fundamentais, desconhecendo que, enquanto pensamento interiorizado, o ciclo completo (ou investigação pela PM) nada afronta. Por outro lado, do instante em que apregoa, como fez o miliciano retro-citado em seu artigo, a necessidade de ‘defesa social’ contra ameaças, rasga-se a CF, tripudia-se a sistemática garantista de direitos fundamentais e o direito tomba pela força do golpe de estado.

4. Conceito legal de ciclo completo policial Inobstante as pretensões inconstitucionais de a polícia militar exercer as funções de investigação criminal comum, como já se demonstrou ex radice, recente diploma legislativo estadual contemplou o que se compreende por ciclo completo.

Com efeito, dispõe a Lei Estadual nº. 11.370, de 4 de fevereiro de 2009, que veicula o estatuto policial civil baiano, em seu art. 5º
“A investigação policial, além de atender aos objetivos precípuos de natureza jurídico-processuais, deve ainda, em articulação com o Sistema de Defesa Social, identificar ações e procedimentos que se revelem perigosos e que possam contribuir para a ocorrência dos fenômenos criminais.

Parágrafo único – O ciclo completo da investigação policial inicia-se com a notícia-infração, desdobrando-se em ações continuadas e articuladas, inclusive de natureza cartorial, visando à formalização das provas e a minimização dos efeitos dos delitos, incluindo-se as pesquisas técnico-científicas, concluindo-se com definição da autoria e materialidade.”

O texto do legislador da Bahia é estreme de dúvidas: o tal ciclo completo de polícia, na verdade é ciclo completo de POLÍCIA JUDICIÁRIA, que se inicia com a notícia do crime e se desdobra por inúmeros atos administrativo-processuais, culminando com o estabelecimento da autoria e materialidade delitivas, os quais no sistema processual nacional são acometidos, na seara estadual, à polícia civil.

5. Conclusão A polícia civil representa importante instrumental de preservação da segurança pública e dos demais direitos fundamentais do homem.

Aliás, qualquer possibilidade de limitação de seus bens ou de sua liberdade depende indiscutivelmente do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF); e nesse contexto irrompe, igualmente indiscutível, que a apuração das infrações penais inauguradora da 1ª fase da persecução criminal está a cargo da polícia civil (arts. 4º a 23 do CPP), cuja competência é fixada por norma constitucional inalterável (art. 144, § 4º).

Ressalte-se que as funções de polícia ostensiva, tarefa da polícia militar, se voltam para evitar a consumação de crimes; atribuição primordial e insuficientemente realizada pela milícia, fulminando o preceito estatuído no art. 37, caput, CF (princípio da eficiência), como se vê nos dados estatísticos de São Paulo. Nem é demais lembrar Caio Tácito , para quem: “Não é competente quem quer, mas, sim, quem pode em face da lei”. Sustentava o brilhante Desembargador e Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo que “A tranqüilidade social pode obter-se por meio do ‘toque de recolher’. Tal artificialismo não se logra conservar, por largo tempo, em prejuízo evidente das liberdades públicas.

Considera-se que surge natural, no instante em que existe concórdia dos indivíduos, na aceitação do Governo e das leis. O desassossego nasce da recusa lavrada. A ordem social desponta, nos preceitos fundamentais, que a Constituição estabelece, fixando as bases da sociedade. A harmonia na comunidade, entretanto, se funda e se mantém na medida em que se atendem, minimamente, aos anseios políticos, econômicos e aos sociais. Melhor especificando, representatividade, educação, saúde, trabalho e lazer.
A paz pública não consiste, portanto, em questão, unicamente, de polícia, como é forçoso reconhecer. A leitura desavisada da Constituição da República conduz a tal idéia defeituosa. A polícia, tão só, sustenta e recompõe, nos limites da lei, a paz pública; porém, jamais a institui.” Forçoso reconhecer, por conseguinte, que a ventilada adoção do ciclo completo ou repressão imediata desponta inconstitucional.

 A tirania das idéias associada à falaciosa implementação de uma política de direito penal do inimigo (em contra-posição aos direitos do cidadão) emerge, igualmente imprestável, seja qual for o argumento utilizado. Ainda que se diga que a polícia militar fará o atendimento personalizado, deslocando veículos para registro de ocorrência domiciliar.

Amanhã dirá também que é desnecessária a existência de um órgão acusador – Ministério Público – pois poderia perfeitamente acusar o infrator, sem que fosse preciso perder-se tempo com idas e vindas aos fóruns. E por que não se exterminar a magistratura? Afinal, poderia, no futuro, também julgar o cidadão, em nome da celeridade e da defesa social! Pronto: é o ciclo completo da conspiração, do desejo insano e corporativo de exercer a maior de todas as opressões: fincar-se a baioneta na dignidade humana. No Estado de Direito é curial respeitar seu parâmetro maior – a Constituição – sob pena de serem pisoteados os direitos e garantias individuais pelos coturnos de plantão.

Nestor Sampaio Penteado Filho Delegado de Polícia, Mestre em Direito Processual Penal e Professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus( fonte ADPESP).


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