sábado, 2 de julho de 2011

leitura obrigatória


CICLO COMPLETO NA POLÍCIA CIVIL


Nos países de moderna civilização e adiantada cultura a polícia é uma organização civil, integrada por funcionários civis, regidos por regulamentos próprios ao serviço público civil, que realiza o ciclo completo de polícia, isto é, o desempenho conjunto da investigação criminal ou polícia judiciária e a execução do policiamento uniformizado destinado à prevenção criminal pela presença ostensiva dos policiais nas ruas.

Assim ocorre no Reino Unido, Alemanha, Áustria, Holanda, Bélgica, Suíça, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Rússia, nos países da Europa Oriental e nos Estados Unidos. Exceção, apenas, dos países da Europa latina onde existem gendarmarias, corporações militares empregadas no policiamento de forma complementar (policiamento rural, polícia rodoviária, guarda dos palácios do governo) ao trabalho exercido, prioritariamente, pelas polícias civis. Assim, corporações com estatuto civil como a Polícia Nacional da França, a Polícia de Estado, na Itália, a Polícia de Segurança Pública, em Portugal, são as responsáveis por todo o serviço policial nos grandes centros urbanos e áreas metropolitanas dos seus países.

Não poderia ser de outro modo em países onde a consciência jurídica da população resulta de uma cultura secular. A POLÍCIA é um serviço público próprio da administração civil que serve a sociedade civil, para garantir a segurança das pessoas e do seu patrimônio em decorrência dos direitos de cidadania assegurados pelas cartas constitucionais. Torna-se impróprio o emprego de corporações militares para exercerem essa missão genuinamente civil de polícia: nessas forças predomina o espírito de casta, distanciando os seus integrantes do cidadão comum; estão sujeitas à legislação militar, inclusive à justiça militar para julgamento de crimes praticados contra civis durante o serviço (no Brasil, com algumas poucas exceções); a sua formação belígera, peculiar das Forças Armadas, acaba influenciando negativamente no trato com a sociedade;  inexiste o livre acesso do cidadão aos quarteis e aquartelamentos, diferentemente das demais repartições públicas; torna-se pesada e dispendiosa a estrutura das suas organizações, com os seus desdobramentos hierárquicos que exigem muitas pessoas para a manutenção ou prestação de determinados serviços.

No Brasil, juristas no início do século XX idealizaram o modelo de polícia para a república e para a democracia: Antônio Augusto Cardoso de Castro, Alfredo Pinto, Leoni Ramos. Geminiano da Franca, os três primeiros, futuros ministros do Supremo Tribunal Federal, se inspiraram nas instituições francesas, até hoje representadas pela respeitada Polícia Nacional, para reorganizar a Polícia Civil do Distrito Federal, modelo para as demais coirmãs do país. O comissariado, representado aqui pela delegacia de polícia, o “gardien de la paix”, aqui o guarda civil, as especializações da perícia criminal com a criação dos Gabinetes Médico-Legal, Gabinete de Identificação, Gabinete de Perícias Criminais, a formação profissional através da Escola de Polícia, o Museu, elo de ligação com a comunidade para difusão de experiências, as investigações especializadas a cargo das delegacias auxiliares e a magnífica sede construída no legítimo estilo eclético francês pelo mais afamado arquiteto brasileiro, Heitor de Mello. Essa estrutura fazia da polícia civil uma polícia de ciclo completo, onde delegacias a par de desenvolverem o trabalho de polícia judiciária, orientavam o policiamento uniformizado da Guarda Civil, nas suas respectivas circunscrições.

Durante sessenta anos tivemos uma polícia que serviu de modelo para países estrangeiros, inclusive para a polícia portuguesa e de outros países da América. Em 1964 sobreveio o opróbrio nacional. Militares indisciplinados, traidores da Constituição do país e do seu comandante em chefe, o Presidente da República, sublevaram-se contra a nação, com o apoio da frota naval norte-americana, lançando-a por vinte e cinco anos numa vergonhosa ditadura.

Nesse novo contexto indagaram-se os novos senhores do poder sobre os destinos das polícias civis, organizações estaduais armadas mas desenquadradas dos ditames da caserna e, portanto,  para eles "pouco confiáveis". Além disso, pouco tempo antes, em decorrência da criação do Estado da Guanabara, houve uma maciça opção de policiais do antigo Distrito Federal pela subordinação ao governo federal, ainda, sob a presidência do presidente deposto João Goulart.

Diante disso, o regime militar, pelas afinidades existentes,  decidiu confiar às milícias estaduais a execução do policiamento ostensivo uniformizado. Refizeram a sua legislação, deram-lhes a exclusividade no desempenho dessa atribuição e colocaram um oficial do Exército no comando de cada uma delas.

A Constituinte de 1988 seria a oportunidade para corrigir erros e distorções, mas no tocante às ideias e propostas para a segurança pública mostraram-se despreparados tanto os constituintes quanto os delegados de polícia, que deveriam apresentar um novo sistema de defesa social condizente com o mundo contemporâneo e democrático. Os representantes dos delegados, embora profissionais, não se mobilizaram para a luta pelo ciclo completo de polícia, que salvaria o Brasil da ineficiência policial..

Nosso sistema de segurança pública, decorrente do disposto no artigo 144 e seus parágrafos da Constituição Federal é realmente único e o mais ineficaz do planeta. Nas polícias de ciclo completo a repartição policial ou delegacia de uma circunscrição desenvolve as investigações criminais e realiza o policiamento uniformizado, ambos direcionados à prevenção e repressão da incidência criminal. As ações policiais se apoiam e se completam na busca dos melhores resultados, porque essa unidade é a única responsável pela segurança pública na sua área.

No nosso atual sistema não existem responsáveis individualizados pela segurança de uma determinada área porque os limites territoriais estabelecidos para os batalhões da polícia militar não são os mesmos determinados como circunscrições policiais das delegacias.

Nos estados brasileiros existe uma desproporção entre os efetivos das suas duas polícias. A investigação policial requer um número de policiais proporcional a incidência criminal do estado, porque cada investigação é um trabalho individual e, às vezes, moroso. Pouco se cuidou nas polícias civis de assegurar a admissão do pessoal necessário para atender a sua atribuição específica. Contam com um número insuficiente de servidores para reprimir através do exercício da polícia judiciária a criminalidade crescente, decorrente do aumento da população, dos problemas sociais e da falta de polícia.

Já as polícias militares, pela sua ostensividade, contam com o apoio dos governadores para engrossarem as suas fileiras. Criaram doutrina, formularam estratégia e estão se transformando em enormes corporações, cujo efetivo já disponibilizam para atividades típicas de polícia judiciária através de investigações conduzidas por milicianos.

Os efetivos tornam-se fatores determinantes para a expansão das competências e serviços. Os delegados de polícia ao se descuidarem do requerido aumento do número de funcionários das suas corporações determinam o futuro das mesmas. Assim, em alguns estados, certamente, pela maior disponibilidade de pessoal, as polícias militares estão sendo autorizadas a lavrar o termo circunstanciado da Lei n° 9.099/95, forma simplificada de processar para encaminhamento a juízo a maioria das infrações penais. Assim chegaram ao ciclo completo de polícia, faltando, apenas, a posse das delegacias policiais, onde, com maior conforto para o cidadão viabilizarão esse atendimento policial.

E a polícia civil, como ficará se os seus dirigentes continuarem a descuidar do progresso da instituição? Terá o destino de uma polícia judiciária tipo portuguesa, que só não foi extinta na época da Revolução dos Cravos porque teve de abrigar os ex-integrantes da PIDE (o serviço secreto do ditador Salazar). Além dos erros internos da administração policial realça a insensibilidade das diretorias das associações de delegados, aferroadas na luta pela manutenção do inquérito policial sob a presidência do delegado, mas esquecidas do alcance social e institucional da implantação do ciclo completo na polícia civil.

Ou seja, os comportamentos atuais conduzem ao estabelecimento em cada estado de uma polícia militar de ciclo completo e de uma agência civil de investigações especializadas, de restrita atuação e operacionalmente dependente da primeira.

Penso que para superar as falhas e contradições originadas no atual sistema de segurança pública do país, inclusive a existência de uma organização militar empregada no policiamento civil e as questões de desentrosamento e ineficiência policiais, torna-se necessário o empenho de todos os segmentos representativos das polícias civis e demais cidadãos para mostrar à sociedade da conveniência de efetivar-se uma reforma constitucional atribuindo o ciclo completo às polícias civis.

Nessa campanha já contam com o apoio de diversos partidos da esquerda e sindicatos de trabalhadores (não policiais) que se manifestaram no período eleitoral a favor de uma polícia desmilitarizada.

Realizada a reforma, na medida em que o número de policiais civis uniformizados aumente, substituirão os policiais militares nas áreas de policiamento ostensivo antes por estes cobertas. As polícias militares passariam a atuar em funções complementares ou auxiliares, à semelhança dos demais países que possuem gendarmarias.

Será uma luta árdua? Talvez, mas outros países já lograram criar as suas polícias civis de ciclo completo.

Para finalizar, desejo acentuar a minha plena concordância com a unificação das polícias estaduais sob estatuto civil, de mais fácil realização sob o aspecto administrativo, com menor dispêndio e que, também, sanearia as falhas estruturais do sistema de segurança pública acima apontadas. Penso, entretanto, que para essa opção as resistências têm sido maiores e mais efetivas e provêm de políticos e militares retrógrados que contam com a divisão e o antagonismo entre as forças policias para o seu enfraquecimento como instituição, como organização operativa e categoria trabalhadora.

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leia também


Cooperação policial na União Europeia

Vale a pena ler o artigo do professor Eugénio Pereira Lucas, da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria - Instituto Politécnico de Leiria, Portugal, sobre cooperação policial na União Europeia - onde faz um estudo sobre as corporações policiais da Europa, mostrando a predominância das polícias civis, o crescimento dos seus efetivos em relação as gendarmarias e o papel subsidiário destas na prestação do serviço policial.(http://jus.uol.com.br/revista/texto/10055/cooperacao-policial-na-uniao-europeia)

Aborda o aspecto da integração da polícia na UE, acentuando as principais ações necessárias a uma efetiva e real cooperação:
" - padrões comuns de recrutamento dos futuros polícias;
  - formação básica policial comum às diferentes forças policiais da U.E.;
  - formação nas questões de segurança europeia;
  - formação em línguas de modo a permitir uma comunicação correta e imediata;
  - harmonização do número, funções e poderes das forças policiais nos diferentes estados da U.E.;
  - dependência de uma mesma entidade nacional e coordenação por uma entidade europeia."

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