Segurança
Na dúvida, a polícia condena à morte
Repetição de tragédias como a do
publicitário Ricardo Aquino e do estudante Bruno Viana refletem a
cascata de erros na formação do policial no Brasil
João Marcello Erthal
Carro do publicitário Ricardo Prudente de
Aquino, morto a tiros por policiais militares na madrugada desta
quinta-feira em São Paulo (Marina Pinhoni/VEJA)
Os caso de Aquino e do estudante Bruno se
assemelham ao da família do menino João Roberto, de apenas 3 anos,
assassinado por dois policiais militares que confundiram o carro da mãe
do menino, Alessandra Soares, com um veículo em que estariam bandidos em
fuga
As famílias do publicitário Ricardo
Prudente de Aquino, 39 anos, e do estudante Bruno Viana, 19, juntaram-se
na semana passada a um grupo de brasileiros que carrega a dor de ter
entes queridos assassinados por agentes da lei. Nos dois casos, em
situações que deveriam ser nada mais que uma abordagem policial
corriqueira. Para o espanto dos parentes das vítimas e de toda a
sociedade, o comando da PM paulista chegou a afirmar que “do ponto de
vista técnico” a ação foi correta. A afirmação em questão foi do
subcomandante da Polícia Militar, Hudson Camilli. A frase desastrosa foi
criticada pelo secretário de Segurança Antonio Ferreira Pinto, na
sexta-feira, em um evento oportuno: a formatura de 920 PMs no Vale do
Anhangabaú. O grupo de quase mil policiais recém-formados estará, em
breve, diante de situações que dependem de decisões rápidas e complexas,
para as quais o bom treinamento é fundamental.
A lógica usada por Camilli para sua
absurda avaliação do caso e a repetição de erros semelhantes são sinais
inequívocos de que algo grave está errado na preparação das forças de
segurança no país. Nos dois episódios da semana passada, quando os
policiais puxaram o gatilho – no caso de Bruno foram pelo menos 25 balas
–, dispararam contra o cidadão a cascata de erros em que se transformou
a formação do policial no Brasil.
As tragédias não aconteceram em rincões.
Aquino foi baleado por policiais militares na noite de quarta-feira, no
Alto de Pinheiros, área nobre da cidade, depois de, segundo a PM, ter
fugido de uma abordagem policial. Bruno dirigia sem carteira, e tentava
escapar da blitz. Nos dois casos, hipoteticamente, os policiais poderiam
considerar que eram carros com bandidos. Mas espanta o fato de os
policiais não terem considerado a possibilidade de os criminosos
transportarem reféns. Ou terem em seu repertório qualquer coisa
difrerente do fuzilamento do suspeito.
A condenação dos suspeitos à morte está
longe de ser uma exceção na história recente das grandes cidades
brasileiras – e certamente há pelo país um sem fim de casos que jamais
chegarão ao conhecimento público. Os caso de Aquino e do estudante Bruno
se assemelham ao da família do menino João Roberto, de apenas 3 anos,
assassinado por dois policiais militares na noite de 6 de julho de 2008,
na zona norte do Rio. Os policiais confundiram o carro da mãe do
menino, Alessandra Soares, com um veículo em que estariam bandidos em
fuga. Assim como no caso do Alto de Pinheiros, a ação foi filmada por
câmeras de segurança de um prédio.
Na sexta-feira, teve início na PM
paulista uma revisão de procedimentos de abordagem. As pequenas
melhorias nos manuais e na formação de agentes, no entanto, têm se
mostrado muito aquém do necessário no Brasil. Mesmo as mais
bem-sucedidas iniciativas de policiamento mostram-se insuficientes para
trazer a polícia para patamares aceitáveis de qualidade para a
população.
Considerada um exemplo positivo de
inovação em estratégia policial, as Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs), cujo mérito principal é retirar de bandidos armados o controle
territorial de morros no Rio de Janeiro, está amparada em um currículo
com ênfase em direitos humanos – diluído no mesmo velho currículo da
formação da PM fluminense. Especialistas em segurança, no entanto,
avaliam que, apesar dos resultados positivos, as UPPsestão presas à
mesma lógica ultrapassada de policiamento de que o Brasil precisa se
livrar.
“Não há novidade. A diferença das UPPs
está na quantidade, no aumento do número de policiais. Contribui para
isso o fato de serem empregados policiais novos, que ainda não carregam
os vícios antigos de corrupção. É um trabalho bastante razoável, mas
ainda é algo baseado em jovens bem intencionados. A forma como se
constrói este policial, por enquanto, ainda é praticamente a mesma
daquele velho PM”, critica o sociólogo Michel Misse, coordenador do
Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ.
A “velha” polícia a que se refere Misse
consiste, segundo ele, na concepção militarizada de policiamento,
oriunda das brigadas que, a partir do regime militar, assumiram a
condição de tropas do policiamento ostensivo no Brasil. “Não tenho
dúvida de que, hoje, a segurança é a área mais atrasada do estado
brasileiro. Temos atrasos na saúde, em educação. Mas é inegável que
nessas áreas houve modernização, mudanças importantes. Ainda vivemos
presos ao passado em matéria de Justiça criminal e em gestão de
segurança”, diz.
Misse aponta problemas tanto na estrutura
de policiamento ostensivo como nas funções de investigação – atribuição
da polícia civil. “No Brasil, em vez de investigar, a polícia se limita
a tomar depoimentos. Um inquérito é dado por concluído quando o
delegado considera que tem em mãos a totalidade dos depoimentos sobre um
caso, transcritos, somados aos laudos de perícia. É isso que chega às
mãos do Ministério Público e que, muitas vezes, é insuficiente para a
condenação”, afirma.
A separação das funções de patrulhamento e
de investigação – áreas respectivamente a cargo das polícias militar e
civil – é, para Cláudio Beato, coordenador do Centro de estudos em
criminalidade da UFMG, um dos problemas centrais para a segurança no
Brasil. “A transformação efetiva da polícia passa pela
desconstitucionalização do capítulo de segurança pública. As
organizações, concebidas como hoje, são rígidas demais para se adaptar
aos problemas locais de um país imenso”, diz Beato. “Há regiões onde
poderíamos ter polícias de ciclo completo, com funções de investigação e
patrulhamento dentro da mesma instituição. Mas constitucionalmente há a
separação”, explica, citando Rio de Janeiro e São Paulo como exemplos
de áreas que ganhariam com um sistema de patrulhamento. “Mexer na
Constituição é complicado. Mas não mexer está nos custando muito caro”,
diz.
Rio de Janeiro – Adaptações locais podem
trazer grandes resultados. Mas a formação, o treinamento e a concepção
tradicional de polícia são amarras para a transformação de que o país
precisa em matéria de segurança. Um estudo apresentado na semana passada
pelo sociólogo e professor Ignácio Cano, da Uerj, constatou que, para
cada UPP instalada em favelas do Rio, há uma redução de seis mortes por
ano. Cano chegou a essa conta considerando o histórico de homicídios nas
favelas antes e depois da criação das unidades de polícia. “Isso é
fruto do fim do modelo de guerra, que era o padrão nesses locais.
Constatamos também a redução de roubos e de violência armada, enquanto
aumentam registros de crimes não-letais, algo que, antes, sequer era
denunciado, por medo”, explica o pesquisador.
O avanço da política, analisa ele, está
na estratégia não de se acabar com o crime ou com o tráfico, mas de por
freio na violência letal e no controle territorial. “A grande esperança,
a partir do estudo, é que a UPP sirva para alavancar uma modificação
nas políticas de segurança. O que temos hoje no Rio é, até certo ponto,
contraditório. Existem áreas que se beneficiam de um sistema novo. E
outras áreas onde quem age é a velha polícia, o policial guerreiro”,
compara.
O estudo tem também entrevistas com
moradores e policiais. E aí surge o dado preocupante da pesquisa.
Segundo Cano, 70% dos policiais das UPPs afirmam que prefeririam
trabalhar em batalhões convencionais de polícia. “Nosso trabalho alerta
para uma necessidade de legitimar o processo por dentro. Entre os
praças, a política não está consolidada”, explica.
Em parte, a rejeição ao modelo de UPP
está nos transtornos de trabalhar em favelas, em situações menos
confortáveis que a dos batalhões, e com um mecanismo de gratificação que
ainda não funciona como incentivo. A conclusão do sociólogo é de que a
política para o policial precisa de ajustes. Mas há algo mais urgente,
como destaca: “Para a tropa, o modelo de policiamento continua sendo o
de confronto com o criminoso”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário