sexta-feira, 11 de março de 2011

O delegado, o inquérito policial e as requisições ministeriais - leitura obrigatória


O papel do delegado e as regras do inquérito policial
Por Rodrigo Carneiro Gomes
O primeiro instituto de processo penal, referido no Código de Processo Penal, a partir do artigo 4º, é o inquérito policial. Não apenas pela sua topografia, o inquérito policial é a gênese de qualquer procedimento de investigação e destina-se à apuração de infrações penais e sua autoria.
A Polícia judiciária só é exercida por autoridades policiais (artigo 4º, parágrafo único do CPP), o que não exclui a atuação de outras autoridades, que são nominadas como “administrativas” (v.g., o INSS quando instrui processos administrativos para apuração de irregularidades internas relacionadas às suas atribuições: fraudes previdenciárias em agências e postos). A autoridade policial para fins de exercício da Polícia judiciária é o delegado de Polícia de carreira (art. 144, § 4º da C.F.-88).
Os manuais de processo penal e os códigos de processo penal interpretados e comentados dispõem sobre os artigos 4º a 23 do CPP com a extensão suficiente para a compreensão do momento de instauração do inquérito policial e de suas características, como falta de contraditório, natureza inquisitiva, mera peça de informação e inexistência de nulidades por qualquer ato defeituoso procedido pela autoridade policial. Autores mais modernos tratam o inquérito policial como investigação criminal pré-processual, em cerca de 20 páginas, e partem para o capítulo referente à titularidade da ação penal.
A conclusão desse tratamento doutrinário é que os profissionais de Direito saem da faculdade com parcos conhecimentos sobre o trâmite do inquérito policial e têm a falsa impressão de que esse é uma mera peça informativa. Olvida-se, contudo, que cerca de 90% das ações penais em curso foram precedidas de inquérito policial e que na ação penal são repetidas, praticamente, todas as provas do inquérito policial, à exceção daquelas tidas como irrepetíveis, a exemplo de exames periciais.
Em outra circunstância (Carneiro, 2005)1, foi abordada a questão de busca e apreensão em escritórios de advocacia e, embora fosse intenção apenas informar e esclarecer e não mudar qualquer opinião particular sobre o tema, pela pesquisa feita para levantamento de correntes doutrinárias e jurisprudenciais e para estudo do caso, se percebeu que a literatura jurídica era praticamente inexistente.
As ações penais de maior repercussão no cenário nacional contam com grandes advogados criminalistas que sabem a importância do acompanhamento do seu cliente desde a fase do inquérito policial, pois têm a exata noção de que se uma prova não for ali produzida, evidentemente, não se tratará de sua repetição em juízo. Desde o nascedouro da investigação policial, com a necessária instauração de um inquérito policial (a fim de dar transparência e controle a qualquer procedimento investigatório, coibindo-se investigações sem qualquer registro formal), abrem-se várias oportunidades para o causídico impetrar pedido de Habeas Corpus, como no caso de atipicidade do fato investigado. O suspeito pode invocar seu direito constitucional ao silêncio e de não produzir prova contra si mesmo. Não se vislumbra a possibilidade de uma denúncia, no caso de réu não confesso e que se manteve em silêncio, se não houver uma investigação prévia.
A investigação prévia ou preliminar sempre existirá, seja qual for a denominação que receba. O termo inquérito policial é antigo e nunca deixou de ser sinuoso. Não se discutirão, nesta oportunidade, os pontos polêmicos como medidas cautelares, possibilidade de contraditório mitigado, poder investigatório, proposições de modificação e modernização do inquérito, prisão em flagrante em sonegação fiscal, subordinação da Polícia Federal ao Ministério da Justiça (a PF exerce a atividade de Polícia judiciária da União, com exclusividade; se é da União, por que não se subordina diretamente a essa?), dentre muitos outros.
Partimos do ponto de vista de que, num roteiro prático, não adianta polemizar, pois a intenção é traçar as primeiras linhas sobre conceitos do cotidiano do profissional voltado para o Direito Penal. É o caso do uso de expressões como indiciamento, meio de investigação, diligência policial, diferenças entre interrogatório, termo de depoimento e termo de declarações.
O marco de início do inquérito policial
Embora o CPP refira que Ministério Público e o juiz podem requisitar a instauração do inquérito policial, qualquer notícia de delito (notitia criminis) pode ser encaminhada ao delegado de Polícia para apuração. Contudo, não é o simples encaminhamento que irá gerar um inquérito policial e nem se inicia o inquérito policial imediatamente pela requisição (não há vedação a um controle de legalidade da requisição, seja por provocação do delegado de Polícia, seja por intervenção judicial).
O delegado de Polícia deve ser o primeiro garantidor da legalidade do procedimento de investigação preliminar, para não ser o coactor da liberdade alheia. Se deixa de atuar, por sentimento pessoal, pode incorrer em prevaricação (art. 319 do CP). Se atua em excesso, com manifesta má-fé, em busca de proveito pessoal, pode haver a figura do abuso de poder da Lei 4.898/65.
Veja-se:
“Inquérito Policial – Constrangimento ilegal – Ausência de ilícito criminal – Trancamento – Art. 4º do CPP. Constitui constrangimento ilegal a instauração de inquérito policial para a apuração de fatos que desde logo se evidenciem inexistentes ou não configurantes, em tese, de infração penal” (STF – RHC – Rel. Rafael Mayer – RT 620/367).
Cabe anotar que há divergência doutrinária quanto ao cabimento da iniciativa judicial de requisição de inquérito policial. Além da doutrina tradicional que se agarra ao texto do artigo 5º, inciso II do CPP, uma nova corrente doutrinária traz dois argumentos em sentido diametralmente oposto quanto à superação da legislação: quebra da imparcialidade do magistrado e quebra do sistema acusatório. Para os críticos do CPP, caberia, com exclusividade, ao Ministério Público, na condição de dominus litis, a iniciativa requisitória.
De qualquer sorte, não se vê razão para que a requisição para instauração de inquérito seja desacompanhada dos elementos descritos no artigo 5º, parágrafo 1º do CPP (embora se refiram apenas ao requerimento da pessoa física ofendida: narração do fato, individualização do indiciado, razões de convicção ou presunção da autoria, rol de testemunhas), porque imprescindíveis para o adequado desenvolvimento da atividade policial investigatória e concatenamento lógico das etapas do raciocínio lógico-jurídico da autoridade requisitante. Isto porque:
“Se a requisição do Ministério Público limita-se a dizer que há crime em tese, mas sem descrever a conduta típica e sem apontar objetivamente o dispositivo legal que a conduta dos agentes teria violado, há que trancar-se o inquérito policial por falta de justa causa.” (HC 389, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Edson Vidigal, publ. no DJ de 11/12/1995, p. 43234 e RT 727, p. 439).
Nessa qualidade de garantidor, o delegado de Polícia pode receber uma denúncia anônima e, a fim de evitar constrangimento ilegal, envidar diligências verificatórias sobre um mínimo de lastro da denúncia, certo que é vedado o anonimato e muitas vezes esse tipo de denúncia tem uma finalidade de prejudicar terceiros, adversários políticos ou satisfazer brigas entre familiares. É por tal razão que o artigo 5º, parágrafo 3º, última parte do CPP, condiciona a instauração de inquérito policial à verificação da procedência da informação trazida por alguém do povo.
Diga-se que a instauração de inquérito policial é a regra para a apuração da autoria e a materialidade de um delito. Há, contudo, circunstâncias que autorizam a mitigação dessa formalidade, como dito alhures. Mas, nem assim, a autoridade policial é dispensada de algum rito. Para a verificação de uma informação sem suporte fático, é comum a expedição de ordem de missão policial escrita, dirigida a agentes ou inspetores de Polícia com o objetivo de levantar um endereço, propriedades em cartório, dados com vizinhos, porteiros, vigilantes, que indiquem a ocorrência e autoria do fato e da localização do possível criminoso.
Logo que descortinada a penumbra antes existente, é recomendável a instauração do inquérito policial, sigiloso por determinação do Código de Processo Penal: um sigilo para proteger a utilidade da investigação criminal e não para garantir a impunidade do criminoso ou manter a ignorância da sociedade, como se tem visto em vãs tentativas das longa manus da criminalidade organizada e seus vassalos.
O inquérito policial pode ser precedido, então, por diligências sumárias, determinadas de ofício pela autoridade policial. É comum, também, haver manifestação do Ministério Público ou de magistrado para apuração de um crime. Ao receber uma requisição ministerial ou judicial, o corregedor de Polícia procederá a um exame perfunctório sobre o enquadramento legal e a prescrição do possível crime, isto porque não haveria traço de legalidade em inquérito policial instaurado para apurar fato atípico ou prescrito, ainda que haja requisição da autoridade competente. Haveria a ausência de justa causa, propalada em inúmeros precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
Nesse caso, como é vedado o arquivamento pela autoridade policial (art. 17 do CPP) do inquérito policial — e aqui também devem ser compreendidas as requisições judiciais, do Ministério Público e do ministro da Justiça —, o delegado-corregedor ou o delegado que exerça o comando local da instituição deverá devolver a requisição do inquérito, acompanhado das peças que o instruem, mediante ofício, devidamente fundamentado. Apenas se as autoridades requisitantes, após o exame dos argumentos expostos pela autoridade policial, não se convencerem do acerto das razões, motivadamente, é que será instaurado o inquérito policial.
Lembre-se que, por interpretação teleológica e sistemática do artigo 93, inciso IX combinado com o artigo 37 da Constituição Federal e com os artigos 2º e 50 da Lei 9.784/99, a discordância entre ambos os pólos (autoridade policial e autoridade requisitante) deve ser fundamentada e racional, distante de vaidades e caprichos. Tratando-se de autoridade com poder requisitório e, prevalecendo a dúvida, a autoridade policial deve instaurar o inquérito e, ato subseqüente, lançar relatório nesse para apreciação judicial da hipótese.
O inquérito policial advirá também de ofício, ou seja, mediante investigações policiais independentes ou decorrentes de continuação de investigações anteriores a inquéritos policiais já arquivados, mas mediante novas provas e até pelo desdobramento de fatos com melhor aprofundamento e recurso a novas tecnologias. Nenhum ato normativo infralegal pode restringir ou condicionar esse poder-dever da autoridade policial, que é uma garantia constitucional da sociedade na repressão da criminalidade comum ou organizada.
Então, ao se deparar com um inquérito policial, o investigado terá certeza de que esse se iniciou por iniciativa policial, por denúncia devidamente apurada (quanto à idoneidade, veracidade e procedência), por requisição judicial, do Ministério Público ou do ministro da Justiça. Em todos os casos, após um juízo de legalidade do delegado de Polícia.
Contudo, essa investigação não pode ser anônima. Deve ser precedida por dois atos formais: a confecção de uma portaria do delegado de Polícia e um ato de tombamento na delegacia, mediante registro no livro próprio e nos meios informatizados de cadastro, a exemplo da distribuição existente nos cartórios de distribuição dos foros.
No âmbito da Polícia Federal, a portaria instauradora deverá conter o número do protocolo e do documento-base da notícia do crime, o relato sucinto do fato delituoso, a tipificação ainda que provisória e, quando possível, a autoria, bem como as diligências de cumprimento imediato (art. 17 da Instrução Normativa 11-DG/DPF de 27/06/01).
O auto de prisão em flagrante deverá observar os artigos 301 e seguintes do CPP, atentando-se para a nova metodologia trazida pela Lei 11.113 de maio de 2005, que alterou a redação do artigo 304 do CPP. Essa alteração permitiu que o condutor do flagrante, encerrado seu depoimento, entregue o preso e os bens arrecadados e possa retornar para suas atribuições normais, como uma patrulha (policial militar), fiscalização rodoviária (policial rodoviário), custódia de preso (agente penitenciário).
Antes da edição da Lei 11.113/05, o condutor e as testemunhas só podiam deixar a delegacia de Polícia quando fossem encerrados todos os atos processuais formais do inquérito policial, com lavratura de autos de prisão, de arrecadação, de apreensão, ciência das garantias constitucionais do preso, nota de culpa, laudo preliminar em caso de entorpecentes, etc.. Agora, há uma economia de tempo muito grande para o condutor do flagrante (em média três horas, por isso o novo modelo também é chamado flagrante eficiente) e para cada uma das testemunhas, além de um incentivo para as funções essenciais de colaboração com a Justiça.
No caso da prisão em flagrante, o auto de prisão em flagrante delito (APFD) faz as vezes da portaria de instauração do inquérito policial (v. art. 535 do CPP). Não há prévia distribuição da notitia criminis porque os fatos são urgentes e geralmente trazidos por agentes policiais da delegacia, outras autoridades públicas, como as retrocitadas, além de fiscais da vigilância sanitária, do Ibama, etc.. O responsável pela presidência do inquérito policial será o delegado plantonista, de sobreaviso ou o delegado da delegacia especializada, caso se faça em horário normal de expediente, a depender do regimento interno, portarias ou instruções normativas que cada órgão policial edite, por se tratar de tema interna corporis. De qualquer sorte, haverá um tombamento do auto de prisão em flagrante delito, recebendo uma numeração e registrando-se nos livros e sistemas informatizados, com dados do criminoso, vítima, tipificação, autoridade responsável e escrivão do feito.
O marco do inquérito policial é a edição da portaria instauradora, com relato sucinto dos fatos, tipificação provisória do delito, ou a lavratura do auto de prisão em flagrante delito. Em ambas as situações, haverá registros formais como tombamento e inscrição de dados básicos mínimos em meio físico e virtual (sistemas informatizados) e um primeiro juízo de legalidade pelo delegado de Polícia, que pode e deve se manifestar sobre a ocorrência, em tese, de um fato típico penal, seja nas requisições que lhe são dirigidas, seja perante as autoridades públicas que tragam um preso à sua presença para formalização dos atos de Polícia judiciária.
As diligências iniciais
Algumas diligências são determinadas pelo delegado de Polícia já na portaria instauradora do inquérito policial. O artigo 6º do CPP contém algumas delas e um considerável rol de medidas de Polícia judiciária a serem procedidas de imediato, independente de provocação. Geralmente, são expedições de ofícios aos órgãos oficiais pedindo complementação de dados sobre a identificação do suspeito e documentos comprobatórios de sua atuação.
Se a investigação policial foi solicitada por um órgão público ou particular, é comum intimar o noticiante para colheita de dados de interesse da investigação, pois, ao ser dado conhecimento do possível fato delituoso, os comunicantes não têm a noção dos contornos de uma investigação e deixam de anotar dados de suma importância para o transcurso dos trabalhos investigatórios.
Para verificar a periculosidade do suspeito, são feitas consultas a bancos de dados policiais e de outros órgãos públicos, com os quais haja convênio, e requerida a folha de antecedentes criminais a cartórios de distribuição judicial e institutos de identificação civil, vinculados a Secretarias de Segurança Pública.
Oitivas de testemunhas: termo de depoimento e termo de declarações
São ouvidas as pessoas envolvidas. Caso não haja impedimento legal (arts. 206 e 208 do CPP), é tomado o compromisso de falar a verdade (art. 203 do CPP: “a testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade”), sob as penas do artigo 342 do CP (falso testemunho: fazer afirmação falsa, calar ou omitir a verdade, reclusão de um a três anos e multa). A testemunha presencial ou a referida por uma que presenciou os fatos ou qualquer outra pessoa que possa trazer elementos de convicção ao presidente do inquérito policial (delegado de Polícia) são ouvidos em termo de depoimento. Na praxe policial, há diferença entre “termo de depoimento”, “termo de declarações”, “interrogatório” e “indiciamento”.
Só prestam depoimento aqueles que tenham obrigação de dizer a verdade. Não estão obrigadas, podendo se eximir de prestar depoimento, as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão (médico, advogado, jornalista), devam guardar segredo. Podem, contudo, ser intimadas para comparecimento perante a autoridade policial e, no momento destinado ao ato cartorário, argüir seu impedimento.
O termo de declarações é reservado para doentes e deficientes mentais, menores de 14 anos, o ascendente ou descendente, irmãos, genitores, afim em linha reta, cônjuge ou companheira do investigado, pois são dispensados do compromisso de dizer a verdade, seja pelas condições físicas e mentais que detenham ou pelo vínculo familiar.
Muitas vezes acontece que uma ou mais testemunhas possam ser suspeitas. Nesse caso, não se toma o compromisso de dizer a verdade, já que não são obrigadas a produzir prova contra si mesmas, diante do privilégio constitucional contra a auto-incriminação. Nessa situação, a pessoa que se encontre na situação relatada será ouvida em termo de declarações, ou seja, sem o compromisso legal da primeira parte do artigo 203 do CPP, como aconteceu em inúmeros Habeas Corpus julgados pelo STF, no caso da CPI do Mensalão.
Indiciamento.
Após as diligências necessárias para a determinação do autor do fato ou do crime, no âmbito da Polícia Federal, a autoridade policial deve lavrar um despacho de indiciamento, que antecederá o interrogatório.
A legislação pátria não esclarece no que consiste o despacho de indiciamento. Também trata indistintamente as figuras de suspeito, investigado, envolvido e indiciado, levando muitos a crer, erroneamente, que o inquérito policial só deva ser remetido ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário (dependendo de disposição em provimento da Justiça Estadual ou Federal), quando houver indiciado preso ou solto, numa interpretação falha do artigo 10 do CPP. No âmbito da Polícia Civil, se tem notícia de que o indiciamento é feito no relatório final da autoridade policial, quando remete o inquérito policial com os necessários apontamentos da materialidade do delito e indícios de autoria.
Na prática policial, existe uma diferença entre o suspeito, o investigado e o indiciado. Só se considera indiciado o investigado contra o qual, no inquérito policial, foram produzidas provas suficientes da existência do delito (materialidade) e encontrados indícios de sua autoria, segundo os fundamentos externados no inquérito pela autoridade policial. É uma garantia ao investigado, pois só será indicado como provável autor do delito após a sua lavratura. Nesse despacho, constará a relação das provas produzidas contra o suspeito, devendo ser mencionados o depoimento das testemunhas, as provas documentais carreadas aos autos (documentos arrecadados e apreendidos, recebidos de terceiros ou via ofício), e, especialmente, a prova pericial (representada por um laudo produzido por experts).
Também se consignará a tipificação do delito que pode ser diversa da portaria inaugural (provisória), diante da maior certeza probatória, mas, ainda assim, não deixará de ser provisória, dela podendo divergir o órgão do Ministério Público ao oferecer a denúncia, que, por seu turno, poderá ser diferente da estabelecida pela sentença criminal condenatória.
Na oportunidade do despacho de indiciação, será designada a data do interrogatório do suspeito, se já não estiver presente. Diante do interrogatório, pode a autoridade policial, na medida em que haja novos elementos, deixar de proceder ao indiciamento e desfazê-lo. É ato exclusivo do delegado de Polícia e de convicção pessoal. Caso o mantenha, a tipificação provisória constante no despacho será reproduzida no prontuário de identificação criminal, assinada pelo indiciado e remetida uma via para os órgãos de identificação e estatística criminal.
O ministro Celso de Mello, no Inquérito 2.041-MG, em decisão publicada em 6 de outubro de 2003, transcrita no Informativo 323/STF, consignou:
“Se é inquestionável que o ato de indiciamento não pressupõe a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, não é menos exato que esse ato formal, de competência exclusiva da autoridade policial, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que torne possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal.
O indiciamento não pode, nem deve, constituir um ato de arbítrio do estado, especialmente se se considerarem as graves implicações morais e jurídicas que derivam da formal adoção, no âmbito da investigação penal, dessa medida de Polícia judiciária, qualquer que seja a condição social ou funcional do suspeito. Doutrina. Jurisprudência.”
O STJ tem decidido que, depois de encerrado o inquérito policial, ainda que a autoridade policial não tenha procedido ao indiciamento formal ou apenas tenha indicado a autoria no relatório final, sem a formalidade do indiciamento, não pode o inquérito policial retroagir ou retroceder para consignação de tal formalidade, com prejuízo para a celeridade do inquérito e da convicção da autoridade policial. Se houver divergência do Ministério Público, quanto à autoria do fato ou faltar o indiciamento, tal carência fica suprida automaticamente pelo oferecimento da denúncia. É a nossa posição, a fim de que o inquérito também seja um caminhar para frente.
Interrogatório
O interrogatório do suspeito será, via de regra, um dos últimos atos do inquérito policial. A Lei 10.792/03 alterou a sistemática do interrogatório policial e judicial, agora dividido em duas partes (sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos — artigo 187 do CPP) e com o mérito de garantir o privilégio contra a auto-incriminação e na esteira de que o interrogatório é instrumento de defesa e não meio de prova, ou seja, não apenas por interpretação jurisprudencial, mas agora também por determinação legal, o silêncio do preso não pode ser entendido em prejuízo de sua defesa ou como confissão. Incumbe ao Estado o ônus da prova e diligenciar os meios probatórios imprescindíveis para a conclusão satisfatória e eficiente da investigação.
O interrogatório abre espaço para duas grandes controvérsias: legalidade e constitucionalidade do uso da videoconferência do réu preso (interrogatório online) e possibilidade do contraditório no inquérito policial durante essa fase. Há vários delegados de Polícia que entendem que, com as alterações promovidas pela Lei 10.792/03, a nota inquisitorial do inquérito policial, sem contraditório, foi mitigada, o que seria, inclusive, importante para a robustez da prova consolidada após o interrogatório e a impossibilidade de o réu influenciar a colheita de provas.
Para os que assim entendem, invoca-se o direito de entrevista prévia do acusado com seu patrono, que será qualificado e interrogado, perante o magistrado, na presença de defensor, além da possibilidade de novo interrogatório a qualquer tempo (art. 196 do CPP). Os que divergem sustentam que as disposições referentes ao interrogatório judicial não são aplicáveis ao interrogatório perante a autoridade policial. Por um lado ou por outro, entendemos que não há uma inquisitoriedade absoluta no inquérito policial, uma vez que o artigo 14 do CPP permite ao indiciado requerer qualquer diligência, “que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”.
Controvérsias à parte, há disposições do interrogatório judicial que devem ser aplicadas também ao interrogatório policial, na falta de disciplina diversa e que não malfira a sua natureza inquisitiva, sem contraditório. Uma delas, além do privilégio contra a auto-incriminação e assistência da família e advogado, é o artigo 193 do CPP, que preceitua a realização de interrogatório por meio de intérprete, quando o interrogando não falar a língua nacional. A autoridade policial, pela adoção de convenções internacionais, deve comunicar o consulado mais próximo acerca da prisão de seu nacional em solo brasileiro (artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, aprovada pelo Decreto 56.435, de 8 de junho de 1965). No entanto, há entendimento jurisprudencial de que a ausência da notificação ao consulado não gera nulidade nem relaxamento do flagrante.
Integram também o ato do interrogatório policial: o preenchimento de boletim de vida pregressa, onde serão consignados dados sociais do interrogado (hábitos, bens, meios de vida, rendimentos — artigo 6º, inciso VI do CPP) e o prontuário de identificação criminal, no qual são consignadas as características físicas do investigado: altura, peso, tipo de nariz, cabelo, tatuagens, etc..
Diante do fenômeno da criminalidade organizada e transnacional, a Lei 9.034/95, em seu artigo 5º, determina a identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas independentemente da identificação civil. Há outras previsões legais como o artigo 109 do ECA (Lei 8.069/90) e a Lei 10.054/00, que prevê a identificação datiloscópica nas hipóteses de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados com violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público. Não se tem notícia de questionamentos constitucionais em face do que dispõe o artigo 5º, inciso LVIII: “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.
Diligências complementares.
Por força do artigo 129 da Constituição Federal, inciso VIII, cabe ao Ministério Público requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. E dispõe o artigo 13 do CPP que incumbirá à autoridade policial realizar as diligências requisitadas pelo Ministério Público.
Tais disposições devem ser interpretadas em harmonia com o artigo 16 do CPP, que reza que o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.
O não atendimento de requisição de diligência complementar, não essencial ou fundamental para a denúncia, não gera efeitos jurídicos. Com efeito, a jurisprudência pátria tem solucionado o conflito de forma a afastar possível imputação de crime de desobediência, solução que deve compreender também o não atendimento de requisição de instauração de inquérito policial sem lastro probatório ou legal. Nessa esteira, deve ser coibido o uso transverso de outros meios processuais como forma de punir o delegado de polícia independente que não se sujeita ou subordina a ímpetos de autoritarismo (ação de improbidade administrativa, inquérito civil, intimações em processo administrativo criminal com trâmite no Ministério Público, representações nas corregedorias). Daí a tão propalada e almejada inamovibilidade buscada pelos integrantes da carreira policial e já assegurada aos representantes do Ministério Público e da magistratura.
Já se decidiu:
"CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. MINISTÉRIO PÚBLICO: ATRIBUIÇÕES. INQUÉRITO. REQUISIÇÃO DE INVESTIGAÇÕES. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. C.F., art. 129, VIII; art. 144, §§ 1º e 4º. I. - Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, C.F., no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (C.F., art. 144, §§ 1º e 4º). Ademais, a hipótese envolvia fatos que estavam sendo investigados em instância superior. II. - R.E. não conhecido." (STF - RECR-205473, DJ de 19/03/99, Rel. Min. Carlos Velloso).
“PROCESSUAL PENAL. "HABEAS-CORPUS". REQUISIÇÃO JUDICIAL DIRIGIDA A AUTORIDADE POLICIAL. NÃO ATENDIMENTO. FALTA FUNCIONAL. ATIPICIDADE PENAL.- Embora não esteja a autoridade policial sob subordinação funcional ao juiz ou ao membro do Ministério Publico, tem ela o dever funcional de realizar as diligências requisitadas por estas autoridades, nos termos do art. 13, II, do CPP.
- A recusa no cumprimento das diligências requisitadas não consubstancia, sequer em tese, o crime de desobediência, repercutindo apenas no âmbito administrativo-disciplinar.- Recurso ordinário provido”. (RHC 6511, Rel. Min. Vicente Leal, STJ, publ. no DJ de 27/10/97).
No modesto entender desse articulista, a jurisprudência dos tribunais superiores ainda é tímida, quando afasta apenas a responsabilidade penal, pois perde a oportunidade de suprimir eventual responsabilidade civil-administrativa, deixada ao sabor do administrador policial, muitas vezes com visão antagônica ao julgado. Explica-se. Se não há ilícito penal e o descumprimento foi de requisição ilegal de outro órgão, seria um contra-senso admitir a existência de uma responsabilidade administrativa-disciplinar residual, ainda que as esferas sejam independentes.
Conclusão
Como se viu, há casos em que o Ministério Público requisita, de forma equivocada, diligências exaurientes do feito, quando, na verdade, a autoridade policial deve se restringir à apuração dos fatos, por meio de indícios de autoria e materialidade do crime. A certeza absoluta só haverá na sentença condenatória transitada em julgado. Tudo o que é apurado antes se baseia em juízos de probabilidade e verossimilhança.
Deve ser buscada a convivência harmônica entre ambas as instituições públicas que devem se complementar, sem o embate percebido atualmente. Temos inúmeras demonstrações de trabalho em conjunto, sem subordinação e com autonomia, que comprovam o acerto da parceria, como nas hipóteses de trabalhos na forma de forças-tarefas.
A desnecessidade de inquéritos policiais de provas plenas, de cognição exaustiva, está posta no artigo 10, parágrafo 2º do CPP, segundo o qual a autoridade pode indicar, no relatório final, testemunhas que não tiverem sido inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas. Com essa medida simples, muitos casos de prescrição podem ser evitados e poupada a repetição de provas, como depoimentos de pessoas que se limitam a confirmar o que foi dito perante a autoridade policial ou perante auditores e técnicos do INSS, por exemplo.
O que o delegado de Polícia jamais poderá deixar em segundo plano é sua missão institucional de primeiro garantidor da legalidade da persecução penal, a qual foi redimensionada, em boa hora, pelos princípios da Constituição cidadã de 1988, que não se contenta com o singelo exercício de uma atividade investigativa a qualquer custo.
Nos apropriados dizeres de Aury (2005, p. 52), “a função de evitar acusações infundadas é o principal fundamento da instrução preliminar, pois, em realidade, evitar acusações infundadas significa esclarecer o fato oculto e, com isso, também assegurar a sociedade de que não existirão abusos por parte do poder persecutório estatal. Se a impunidade causa uma grave intranqüilidade social, não menos grave é um mal causado por processar um inocente”. É por isso que consignamos no texto que o delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade da persecução estatal, por intermédio de um filtro processual que é o inquérito policial.
Referências bibliográficas
1 - CARNEIRO GOMES, Rodrigo. Mandado de busca e apreensão - uma postura crítica da atividade jurídica do advogado, da toga e do trabalho policial. Brasília: Justilex, ano IV, nº. 46, outubro de 2005.
2 - LOPES JR., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal, 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
3 - PACELLI OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal, 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
4 - POLASTRI LIMA, Marcellus. Curso de Processo Penal, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
5 - PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade constitucional das leis processuais penais, 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
6 - SANTOS, Célio Jacinto. Temas sobre o poder investigatório do MP. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/juridico.php?PHPSESSID=7dd2750de6d4e8989a67b01f591cc005. Acesso em 13.fev.2006.
7 - SOUSA, Stenio Santos. As operações da Polícia Federal e as influências políticas. Manifesto pela desvinculação do Departamento de Polícia Federal do Poder Executivo. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 758, 1 ago. 2005. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2006.

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