segunda-feira, 14 de março de 2011

O outro lado da campainha policial


Antes que tudo, devo dizer que fui investigador de polícia (agente) por mais de dez anos e agora que ocupo o cargo de delegado de polícia, posso dizer que conheço os dois lados da “moeda” .

Como dizem por aí, toda história (no caso é estória mesmo) tem sempre três versões: a minha, a sua e a “verdadeira”; e sobre verdade (também liberdade) foram ditas tantas coisas, dentre as quais eu relembro que “dois homens que se preocuparam com os caminhos da América (e do mundo) disseram frases com as palavras “verdade” e “liberdade” interconectadas. Seus nomes: Marcuse e Rorty. Marcuse disse certa vez que ter uma concepção errada de verdade levaria a uma concepção errada de liberdade. Rorty, por seu turno, diferentemente, afirmou que se deixarmos de investigar a verdade (não sabemos como definir) para cuidarmos da liberdade (que sabemos bem o que é quando a perdemos) estaremos fazendo algo melhor com nossas energias”.

Sem entrar, obviamente, em discussões acerca das teorias da verdade (Teoria da Correspondência: X é verdadeiro se X corresponde a um fato; Teoria da Coerência: X é verdadeiro se X é um membro de um conjunto de crenças coerente internamente; Teoria Pragmatista: X é verdadeiro se X é útil de se acreditar – esta parece ser a adotada pelos “ofendidos” pela campainha; Teoria da Verificação Ideal: X é verdadeiro se X é provável, ou verificável em condições ideais) pode-se definir verdade como sendo aquilo que está de acordo com os fatos.

Assim exposto e diante da publicação de tantos textos críticos no sitio do sinpol-ma , estigmatizando a delegada (ou delegado) responsável pelo “crime horrendo” de ter instalado uma campainha como forma de, segundo muitos dos textos que li, humilhar e assediar moralmente o escrivão de polícia decidi fazer algumas considerações.

Primeiro devo dizer que não é nenhuma novidade a instalação de campainhas a fim de que diretores de órgãos públicos, promotores, juízes e também delegados possam, de uma forma mais ágil, rápida ter pessoas que estão sob sua coordenação, em suas salas; ora se “A” chefia uma unidade (seja delegacia, promotoria, gab. de um juiz, gab. de um diretor de um órgão qualquer)  e “B” é por este “coordenado”, nada mais óbvio que, quando necessário, “B” venha ao encontro de “A” (se por este chamado), ou será que o coordenador é que deveria ir ao encontro do coordenado? E para que isto aconteça creio que a utilização de uma campainha seja mais adequada que a utilização das cordas vocais da delegada (no caso em apreço). 

Segundo fiquei sensibilizado com duas afirmações, uma dizia que tal capainha configuraria assédio moral e a segunda que o assédio moral seria CRIME. 

Com devido respeito aos colegas, nenhuma das afirmações corresponde à verdade! E para chegarmos a tal conclusão podemos nos utilizar de qualquer uma das teorias da verdade alhures citadas. 

Assédio moral é a exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras e nesse diapasão humilhar poderia ser conceituado como um sentimento de ser ofendido/a, menosprezado/a, rebaixado/a, inferiorizado/a, submetido/a, vexado/a, constrangido/a e ultrajado/a pelo outro/a. É sentir-se um ninguém, sem valor, inútil. Esse mesmo assédio não está tipificado em nenhum dos artigos do códex repressivo, portanto não é crime, assim como a pedofilia e a homofobia.  Sabe-se, entretanto, que durante o assédio moral é possível que ocorra calúnia, difamação ou injúria.

Assim, pelo que se depreende dos textos publicados pelo site do sinpol, o honrado escrivão é na verdade prestigiado por sua superiora hierárquica, a qual necessita de seus serviços como os peixes precisam da água!  É isso mesmo, o trabalho do escrivão é precioso e dele não se pode prescindir, no entanto, o trabalho do investigador é revestido da mesma grandeza, igualmente o trabalho dos peritos; o que deve nos levar à seguinte conclusão: “não somos nada se considerados isoladamente e podemos muito se trabalhamos em equipe”.

Terceiro posso conjecturar que uma discussão pueril como esta não nos leva a lugar algum, há coisas muito mais importantes para serem discutidas do que a forma como uma delegada convoca um escrivão ou agente a comparecer ao seu gabinete, obviamente que nunca iremos compactuar com atitudes grosseiras, violentas ou mesmo que caracterizem verdadeiramente o assédio moral.

Quarto em um dos comentários um investigador disse em tom de chacota que ao soar a campainha o escrivão deveria comparecer ao gabinete e dizer: “Sim doutora, o que deseja?” Não, tenho absoluta certeza que a delegada não exigiu isso do escrivão ou de qualquer outro servidor, o que ela solicitou ou exigiu, foi a presença em sua sala de determinada pessoa a fim de que pudesse lhe incumbir de alguma tarefa. 

A “sensibilidade” que afeta investigadores e escrivães em chamarem os delegados de “doutores” não é a mesma que possuem em relação a juízes e promotores. 

Todos sabem que doutor é título acadêmico e seu uso tecnicamente correto é restrito ao círculo universitário/científico, não conheço nenhum delegado que exija ser chamado de doutor (ainda que, me permitam a licença “poética”, se trate quase que de um “direito costumeiro”). 

Mas por qual razão alguns ipc´s e epc´s sentem-se menosprezados ao se dirigirem aos delegados tendo que utilizar o termo “doutor” (nem vou discutir aqui se doutor é ou não pronome de tratamento) e não se incomodam em relação a médicos, advogados, promotores e juízes? 

Profissionais da área da saúde afirmam que um complexo de inferioridade, nos campos da psicologia e da psicanálise, é um sentimento de que se é inferior a outrem, de alguma forma. Tal sentimento pode emergir de uma inferioridade imaginada por parte da pessoa afligida. É freqüentemente inconsciente, e pensa-se que leva os indivíduos atingidos à supercompensação, o que resulta em realizações espetaculares, comportamento anti-social, ou ambos.

Trabalhei por vários anos no prédio da Reffsa, onde funcionou um dia a delegacia geral de polícia civil, naquele lugar também havia uma campainha e nem por isso os investigadores, o escrivão ou eu nos sentíamos rebaixados ou humilhados quando a mesma soava. Sempre fiz meu trabalho da forma que me era exigida, nunca me humilhei servindo de motorista para nenhum delegado, quando muito servi de motorista para colegas agentes e cito o nome de um deles como José Orlando Belchior, quantas vezes não lhe fiz o favor de pegar seu filho na escola.

O escrivão e o investigador, não são obviamente empregados particulares dos delegados, somos todos servidores públicos, mas dentre muitas outras, existe a obrigação legal destes de se apresentarem ao responsável pela delegacia quando convocados. A equipe de investigação (escrivães, peritos e investigadores) trabalha sob a orientação do delegado, não o contrário.

Sendo assim, que fique a campainha e que se discutam coisas úteis.

Por: Márcio Dominici, delegado de polícia civil e vice presidente para região sul Adepol

Fonte:


3 comentários:

  1. Abstraindo a discussão a respeito da campanhia, informo que a utilização do termo "doutor" ou "doutora", em que pese seja uma titulação acadêmica, é uma deferência permitida pelo português para profissionais das áreas jurídica e saúde. Isso deve ocorrer pelo costume secular. Assim, por ser apenas uma permissão gramatical, nenhum juiz, promotor, delegado, advogado, médico, etc., podem exigir que assim sejam chamados. Caso isso ocorra, haverá apenas tentativa de amaciar o ego. Mesmo que esses profissionais e outros de outras áreas tenham essa titulação, a sua utilização adequada se dá no meio acadêmico, o que não é o caso de fóruns, promotorias, delegacias, escritórios, consultórios... Afinal, se um juiz for mestre e um promotor Ph.D, não haverá obrigatoriedade de dizer, por exemplo, "mestre Fulano de Tal, a denúncia oferecida pelo Ph.D Beltrano de Tal carece de justa causa". Estranho, né?
    A rigor a rigor, não observo nenhum problema em chamar esses profissionais de "doutor" ou "doutora", assim como não há qualquer sentimento de inferioridade. Afinal, a utilização é secular e a discussão a respeito desse assunto demonstra mais recalque do que correção gramatical.

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  2. Eu e outros colegas, quando fomos nomeados em 2009 para a PC em Amarante-MA, nos deparamos com algo estranho: na DEPOL, o "delegado" era um IPC antigão, turma de 98. Os meses se passaram e ele instalou em seu "gabinete" uma campainha policial, mas nós, policiais, não atendíamos ao chamado do aparelho utilizado para chamar mordomos em telenovelas. Ele se foi. Hoje, o delegado é de carreira. Aliás, um delegado extremamente competente, que riu-se muito quando comentamos sobre a campainha do "delegado" anterior.

    Seja qual for o delegado, creio que servidor nenhum (policial ou não) tem obrigação de atender ao chamado da tal campainha. Ora, pelo fato do delegado ser o superior hierárquico, ele não pode dirigir-se pessoalmente aos seus "inferiores" no ambiente de trabalho? Não pode gastar suas cordas vocais? Não pode sair do seu gabinete e ir até o cartório do escrivão? Seria submissão demias da autoridade fazê-lo?

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  3. Luís,
    Você está correto, fazendo uma espécie de "mea culpa" cheguei à conclusão de que tal campainha não colabora para um ambiente de trabalho saudável, no entanto, continuo com o pensamento de que tal assunto ganhou proporções muito maiores do que deveria, tenho certeza que o escrivão poderia ter tomado a iniciativa de solicitar à delegada que a campainha fosse retirada e tudo seria resolvido sem maiores problemas. O ideal é que seja instalado um telefone com ramal.

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